A palavra de Monteiro
– Os ensinamentos aqui são variados.Fora o amigo de Belarmino quem tomara a palavra. Mostrando
agradável maneira de dizer, continuou:
– Há três anos sucessivos, venho diariamente ao Centro de
Mensageiros e as lições são sempre novas. Tenho a impressão de
que as bênçãos do Espiritismo chegaram prematuramente ao
caminho dos homens. Se minha confiança no Pai fosse menos
segura, admitiria essa conclusão.
Belarmino, que observava atento os gestos do amigo, interveio,
explicando:
– O nosso Monteiro tem grande experiência do assunto.
– Sim – confirmou ele –, experiência não me falta. Também
andei às tontas nas semeaduras terrestres. Como sabem, é muito
difícil escapar à influência do meio, quando em luta na carne. São
tantas e tamanhas as exigências dos sentidos, em relação com o
mundo externo, que não escapei, igualmente, a doloroso desastre.
– Mas, como? – indaguei interessado em consolidar conhecimentos.
– É que a multiplicidade de fenômenos e as singularidades
mediúnicas reservam surpresas de vulto a qualquer doutrinador
que possua mais raciocínios na cabeça que sentimentos no coração.
Em todos os tempos, o vício intelectual pode desviar qualquer
trabalhador mais entusiasta que sincero, e foi o que me aconteceu.
Depois de ligeira pausa, prosseguiu:
– “Não preciso esclarecer que também parti de “Nosso Lar”,
noutro tempo, em missão de Entendimento Espiritual. Não ia para
estimular fenômenos, mas para colaborar na iluminação de companheiros
encarnados e desencarnados. O serviço era imenso.
Nosso amigo Ferreira pode dar testemunho, porquanto partimos
quase juntos. Recebi todo o auxilio para iniciar minha grande
tarefa e intraduzível alegria me dominava o espírito no desdobramento
dos primeiros serviços. Minha mãe, que se convertera em
minha devotada orientadora, não cabia em si de contente. Enorme
entusiasmo instalara-se-me no espírito.
“Sob meu controle direto estavam alguns médiuns de efeitos
físicos, além de outros consagrados à psicografia e à incorporação;
e tamanho era o fascínio que o comércio com o invisível
exercia sobre mim, que me distrai completamente quanto à essência
moral da doutrina.
“Tínhamos quatro reuniões semanais, às quais comparecia
com assiduidade absoluta. Confesso que experimentava certa
volúpia na doutrinação aos desencarnados de condição inferior.
Para todos eles, tinha longas exortações decoradas, na ponta da
língua. Aos sofredores, fazia ver que padeciam por culpa própria.
Aos embusteiros, recomendava, enfaticamente, a abstenção da
mentira criminosa, Os casos de obsessão mereciam-me ardor
apaixonado. Estimava enfrentar obsessores cruéis para reduzi-los
a zero, no campo da argumentação pesada.
“Outra característica que me assinalava a ação firme era a
dominação que pretendia exercer sobre alguns pobres sacerdotes
católicos-romanos desencarnados, em situação de ignorância das
verdades divinas. Chegava ao cúmulo de estudar, pacientemente,
longos trechos das Escrituras, não para meditá-los com o entendimento,
mas por mastigá-los a meu bel-prazer, bolçando-os
depois aos Espíritos perturbados, em plena sessão, com a idéia
criminosa de falsa superioridade espiritual. O apego às manifesta
ções exteriores desorientou-me por completo. Acendia luzes para
os outros, preferindo, porém, os caminhos escuros e esquecendo a
mim mesmo. Somente aqui, de volta, pude verificar a extensão da
minha cegueira.
“Por vezes, após longa doutrinação sobre a paciência, impondo
pesadíssimas obrigações aos desencarnados, abria as janelas do
grupo de nossas atividades doutrinárias para descompor as crianças
que brincavam inocentemente na rua. Concitava os perturbados
invisíveis a conservarem serenidade para, daí a instantes,
repreender senhoras humildes, presentes à reunião, quando não
podiam conter o pranto de algum pequenino enfermo. Isso, quanto
a coisas mínimas, porque, no meu estabelecimento comercial,
minhas atitudes eram inflexíveis. Raro o mês que não mandasse
promissórias a protesto público. Lembro-me de alguns varejistas
menos felizes, que me rogavam prazo, desculpas, proteção. Nada
me demovia, porém. Os advogados conheciam minhas deliberações
implacáveis. Passava os dias no escritório estudando a melhor
maneira de perseguir os clientes em atraso, entre preocupações
e observações nem sempre muito retas e, à noite, ia ensinar o
amor aos semelhantes, a paciência e a doçura, exaltando o sofrimento
e a luta como estradas benditas de preparação para Deus.
“Andava cego. Não conseguia perceber que a existência terrestre,
por si só, é uma sessão permanente. Talhava o Espiritismo
a meu modo. Toda a proteção e garantia para mim, e valiosos
conselhos ao próximo. Ao demais disso, não conseguia retirar a
mente dos espetáculos exteriores. Fora das sessões práticas, minha
atividade doutrinária consistia em vastíssimos comentários dos
fenômenos observados, duelos palavrosos, narrações de acontecimentos
insólitos, crítica rigorosa dos médiuns.”
Monteiro deteve-se um pouco, sorriu e continuou:
– “De desvio em desvio, a angina encontrou-me absolutamente
distraído da realidade essencial. Passei para cá, qual demente
necessitado de hospício. Tarde reconhecia que abusara das sublimes
faculdades do verbo. Como ensinar sem exemplo, dirigir sem
amor? Entidades perigosas e revoltadas aguardaram-me à saída do
plano físico. Sentia, porém, comigo, singular fenômeno. Meu
raciocínio pedia. socorro divino, mas meu sentimento agarrava-se
a objetivos inferiores. Minha cabeça dirigia-se ao Céu, em súplica,
mas o coração colava-se à Terra. Nesse estado triste, vi-me
rodeado de seres malévolos que me repetiam longas frases de
nossas sessões. Com atitude irônica, recomendavam-me serenidade,
paciência e perdão às alheias faltas; perguntavam-me, igualmente,
porque me não desgarrava do mundo, estando já desencarnado.
Vociferei, roguei, gritei, mas tive de suportar esse tormento
por muito tempo.
“Quando os sentimentos de apego à esfera física se atenuaram,
a comiseração de alguns bons amigos me trouxe até aqui. E
imagine o irmão que meu Espírito infeliz ainda estava revoltado.
Sentia-me descontente. Não havia fomentado as sessões de intercâmbio
entre os dois planos? Não me consagrara ao esclarecimento
dos desencarnados?
“Percebendo-me a irritação ridícula, amigos generosos submeteram-
me a tratamento. Não fiquei satisfeito. Pedi à Ministra
Veneranda uma audiência, visto ter sido ela a intercessora da
minha oportunidade. Queria explicações que pudessem atender ao
meu capricho individual. A Ministra é sempre muito ocupada,
mas sempre atenciosa. Não marcou a audiência, dada a insensatez
da solicitação; no entanto, por demasia de gentileza, visitou-me
em ocasião que reservara a descanso. Crivei-lhe os ouvidos de
lamentações, chorei amargamente e, durante duas horas, ouviu-me
a benfeitora por um prodígio de paciência evangélica. Em silêncio
expressivo, deixou que me cansasse na exposição longa e inútil.
“Quando me calei, à espera de palavras que alimentassem o
monstro da minha incompreensão, Veneranda sorriu e respondeu:
- Monteiro, meu amigo, a causa da sua derrota não é complexa,
nem difícil de explicar. Entregou-se, você, excessivamente ao
Espiritismo prático, junto dos homens, nossos irmãos, mas nunca
se interessou pela verdadeira prática do Espiritismo junto de
Jesus, nosso Mestre.”
Nesse instante, Monteiro fez longa pausa, pensou uns momentos
e falou, comovido:
– Desde então, minha atitude mudou muitíssimo, entendeu?
Aturdido com a lição profunda, respondi, mastigando palavras,
como quem pensa mais, para falar menos:
– Sim, sim, estou procurando compreender.
Ponderações de Vicente
Não estava farto de lições, mas, para o momento, havia aprendidobastante. Impressionado com o que me fora dado observar,
não insisti com Vicente para prolongar nossa demora no
Centro de Mensageiros.
Deixando grandes grupos em conversação ativa, reconstituindo
projetos e refazendo esperanças, segui o companheiro que me
convidava a visitar os imensos jardins. Roseirais enormes balsamizavam
a atmosfera leve e límpida.
– Sinto-me fortemente impressionado – murmurei –. Quem
diria pudessem caber tantas responsabilidades a essas criaturas?
Não conheci pessoalmente nenhum médium ou doutrinador do
Espiritismo, justificando agora minha surpresa.
Vicente sorriu e ponderou:
– Você, meu caro, procede das Câmaras de Retificação, onde
os trabalhos são muito reservados e circunscritos. Talvez sua
impressão provenha dessa circunstância. Verá, porém, com o
tempo, que existem aqui locais de conversações dessa natureza,
referentes a todas as oportunidades perdidas. Já visitou alguma
dependência do Ministério do Esclarecimento?
– Não.
– Localizam-se, ali, os enormes pavilhões das escolas maternais.
São milhares de irmãs que comentam, por lá, as desventuras
da maternidade fracassada, buscando reconstituir energias e caminhos.
Ainda ali, temos os Centros de Preparação à Paternidade.
Grandes massas de irmãos examinam o quadro de tarefas perdidas
e recordam, com lágrimas, o passado de indiferença ao dever.
Nesse mesmo Ministério, temos a Especialização Médica. Nobres
profissionais da Medicina, que perderam santas oportunidades de
elevação, lá discutem seus problemas.
Nesse instante o interrompi, observando:
– Entretanto, somos médicos e não nos achamos lá.
– Sim – explicou Vicente, bondoso –, infelizmente para nós
ambos, caímos em toda a linha. Não só na qualidade de médicos,
mas muito mais como homens, pois que, se disse a você o que
sofri, ainda não contei o que fiz.
– É verdade – concordei, desapontado, recordando minha
condição de suicida inconsciente.
– Ainda no Esclarecimento – prosseguiu o companheiro –,
temos o Instituto de Administradores, onde os Espíritos cultos
procuram restaurar as forças próprias e corrigir os erros cometidos
na mordomia terrestre. Nos Campos de Trabalho, do Ministério da
Regeneração, existem milhares de trabalhadores que se renovam
para a recapitulação das grandes tarefas da obediência.
– Somos numerosos – continuou, sorridente – os falidos nas
missões terrestres e note-se que todos os que hajam chegado a
zonas como “Nosso Lar” devem ser levados à conta dos extremamente
felizes. Temos aqui dois Ministérios Celestiais, como o da
Elevação e o da União Divina, cuja influenciação santificante
eleva o padrão dos nossos pensamentos sem que o percebamos de
maneira direta. O estágio aqui, André, representa uma bênção do
Senhor e, por muito que trabalhássemos, nunca retribuiríamos a
esta colônia na medida de nosso débito para com ela. Nossa situação
é a de abrigados em verdadeiro paraíso, pelo ensejo de serviço
edificante que se nos oferece. Quanto a outros companheiros
nossos...
Fez longo hiato e continuou:
– Quanto a muitos, estão fazendo angustiosas estações de aprendizado
nas regiões mais baixas. São infelizes prisioneiros uns dos outros, pela cadeia de remorsos e malignas recordações. No
que concerne à Medicina, os colegas em bancarrota espiritual são
inúmeros. A saúde humana é patrimônio divino e o médico é
sacerdote dela. Os que recebem o titulo profissional, em nosso
quadro de realizações, sem dele se utilizarem a bem dos semelhantes,
pagam caro a indiferença. Os que dele abusam são, por
sua vez, situados no campo do crime. Jesus não foi somente o
Mestre, foi Médico também. Deixou no mundo o padrão da cura
para o Reino de Deus. Ele proporcionava socorro ao corpo e
ministrava fé à alma. Nós, porém, meu caro André, em muitos
casos terrestres, nem sempre aliviamos o corpo e quase sempre
matamos a fé.
As palavras sensatas do amigo caiam-me n’alma como raios
de luz. Tudo era a verdade, simples e bela. Ainda não pensara, de
fato, em toda a grandeza do serviço divino de Jesus Médico. Ele
expulsara febres malignas, curara leprosos e cegos de nascença,
levantara paralíticos, mas nunca ficava apenas nisto. Reanimava
os doentes, dava-lhes esperanças novas, convidava-os à compreensão
da Vida Eterna.
Engolfara-me em pensamentos grandiosos, quando o companheiro
voltou a falar:
– Tenho um amigo, nosso colega de profissão, que se encontra
nas zonas inferiores, há alguns anos, atormentado por dois
inimigos cruéis. Acontece que ele muito faliu como homem e
médico. Era cirurgião exímio, mas, tão logo alcançou renome e
respeito geral, impressionou-se com as aquisições monetárias e
caiu desastradamente. Nos dias de grandes negócios financeiros,
deslocava a mente das obrigações veneráveis, colocando-a distante,
na esfera dos banqueiros comuns. Não fosse a proteção espiritual,
essa atitude teria comprometido oportunidades vitais de
muita gente. A colaboração do pobre amigo tornara-se quase nula,
e alguns desencarnados nas intervenções cirúrgicas que ele praticava,
notando-lhe a irresponsabilidade, atribuíram-lhe a causa da
morte física, quando não a esperavam, votando-lhe ódio terrível.
Amigos do operador prestaram esclarecimentos justos a muitos;
entretanto, dois deles, mais ignorantes e maldosos, perseveraram
na estranha atitude e o esperaram no limiar do sepulcro.
– Horrível! – exclamei. Se ele, porém, não é culpado da desencarnação
desses adversários gratuitos, como pode ser atormentado
desse modo?
Explicou Vicente, em tom mais grave:
– Realmente, não tem a culpa da morte deles. Nada fez para
interromper-lhes a existência física. Mas é responsável pela inimizade
e incompreensão criadas na mente dessas pobres criaturas,
porque, não estando seguro do seu dever, nem tranqüilo com a
consciência, o nosso amigo julga-se culpado, em razão das outras
falhas a que se entregou imprevidentemente. Todo erro traz fraqueza
e, assim sendo, o nosso colega, por enquanto, não adquiriu
forças para se desvencilhar dos algozes. Perante a Justiça Divina,
portanto, ele não resgata crimes inexistentes, mas repara certas
faltas graves e aprende a conhecer-se a si mesmo, a entender as
obrigações nobres e praticá-las, compreendendo, por fim, a felicidade
dos que sabem ser úteis com segurança de fé em Deus e em
si mesmos. A noção do dever bem cumprido, André, ainda que
todos os homens permaneçam contra nós, é uma luz firme para o
dia e abençoado travesseiro para a noite. O nosso colega, tendo
abusado da profissão, entrou em dolorosa prova.
– Ah! sim – exclamei –, agora compreendo. Onde exista uma
falta, pode haver muitas perturbações; onde apagamos a luz,
podemos cair em qualquer precipício.
– Justamente
Calou-se o amigo, andando, muito tempo, ao meu lado, como
se estivesse surpreendido, como eu, defrontando as avenidas de
rosas. Depois de longas meditações, convidou-me fraternalmente:
– Regressemos ao nosso núcleo. Creio devamos ouvir Aniceto,
ainda hoje, referente mente ao serviço comum
Preparativos
A noite, Aniceto veio ver-nos, começando por dizer:
– Amanhã deveremos partir os três, a serviço nas esferas da
Crosta. Telésforo recomendou-me certas atividades de importância,
mas posso atendê-las em particular, proporcionando a ambos
uma estação semanal de experiência e serviço.
Fiquei radiante. Muita vez regressara ao ninho doméstico,
tornara à cidade em que desenvolvera a tarefa última e, todavia,
não me detivera no exame das possibilidades extensas do concurso
fraternal. De quando em vez, era defrontado por situações
difíceis, nas quais velhos conterrâneos encaravam problemas de
vulto; entretanto, sentia-me incapaz de auxiliá-los, eficientemente,
na solução desejável. Faltava-me técnica espiritual para fazê-lo.
Não tinha bastante confiança em mim mesmo.
Deixando perceber que ouvira meus pensamentos profundos,
Aniceto dirigiu-me a palavra de maneira especial, asseverando:
– Você, André, ainda não pôde auxiliar os amigos encarnados
porque ainda não adquiriu a devida capacidade para ver. É razoável.
Quando na carne, somos muitas vezes inclinados a verificar
tão somente os efeitos, sem ponderar as origens. No mendigo,
vemos apenas a miséria; no enfermo, somente a ruína física. Fazse
indispensável identificar as causas.
Depois de meditar alguns momentos, prosseguiu:
– Procuraremos, contudo, remediar a situação. Amanhã, pela
madrugada, você e Vicente apareçam no Gabinete de Auxílio
Magnético às Percepções, que fica junto ao Centro de Mensageiros.
Darei as providências para que vocês alcancem o necessário
melhoramento da visão. Peço-lhes, todavia, receberem semelhante
auxílio em prece. Roguem a Deus lhes permita a dilatação do
poder visual. Compenetrem-se da grandeza desse dom sublime. E,
sobretudo, enviem à Majestade Eterna um pensamento de consagração
ao seu amor e aos seus serviços divinos. Não desejo induzi-
los a atitudes de fanatismo sem consciência. Não podemos
abusar da oração aqui, segundo antigas viciações do sentimento
terrestre. No círculo carnal, costumamos utilizá-la em obediência
a delituosos caprichos, suplicando facilidades que surgiriam em
detrimento de nossa própria iluminação. Aqui, todavia, André, a
oração é compromisso da criatura para com Deus, compromisso
de testemunhos, esforço e dedicação aos superiores desígnios.
Toda prece, entre nós, deve significar, acima de tudo, fidelidade
do coração. Quem ora, em nossa condição espiritual, sintoniza a
mente com as esferas mais altas e novas luzes lhe abrilhantam os
caminhos.
Diante da nobre autoridade de Aniceto, não me atrevi a falar e
cheguei mesmo a recear a externação de qualquer pensamento.
Deixou-nos o generoso instrutor com palavras carinhosas de
amizade e incentivo.
Vicente e eu acalentávamos projetos magníficos. Fiamos, pela
primeira vez, cooperar a favor dos encarnados em geral. Nosso
repouso noturno foi brevíssimo. Aguardávamos, ansiosamente, a
alvorada, a fim de receber o auxílio magnético do Gabinete referido.
Poucas vezes orei com a emoção daquela hora. Os esclarecidos
técnicos da instituição colocaram-nos, primeiramente, em
relação mental direta com eles e, em seguida, submeteram-nos a
determinadas aplicações espirituais, que ainda não posso compreender
em toda a extensão e transcendência. Observei, contudo,
que a colaboração magnética não nos retirava o sentido consciencial,
e aproveitei a oportunidade para a oração sincera, que era
mais um compromisso de trabalho que ato de súplica, propriamente
considerado.
Decorrido certo tempo, fomos declarados em liberdade para
sair, quando nos prouvesse.
A principio, nada notei de extraordinário, embora sentisse,
dentro do coração, nova coragem e alegria diferente. Experimentava
bom ânimo, até então desconhecido. Meus sentidos da visão
e da audição pareciam mais límpidos.
Aniceto, que se mostrava muito satisfeito, esperava-nos no
Centro, marcando a partida para o meio-dia.
Ansioso, aguardei o instante aprazado.
Não nos ausentamos de “Nosso Lar” como os viajores terrestres,
geralmente carregados de matalotagens e volumes diversos.
– Aqui – disse Aniceto jocosamente –, toda a nossa bagagem
é a do coração. Na Terra, malas, bolsas, embrulhos; mas, agora,
devemos conduzir propósitos, energias, conhecimentos e, acima
de tudo, disposição sincera de servir.
Alguns companheiros presentes riram-se com gosto.
Nesse instante, nosso orientador fez algumas recomendações.
Designou colegas para a chefia de turmas de aprendizado, estabeleceu
programas de serviço e notificou que voltaria à colônia,
diariamente, por algumas horas, deixando-nos, Vicente e eu, nos
serviços da Crosta, em trabalhos e observações que deveriam
prolongar-se por toda a semana.
Despedimo-nos dos camaradas de luta, repletos de esperança.
Era a nossa primeira excursão de aprendizado e cooperação aos
semelhantes.
Quando nos puséramos a caminho, nosso Instrutor observou:
– Creio que a viagem para vocês será diferente. Certo, estão
habituados à passagem livre, mantida por ordem superior para as
atividades normais de nossos trabalhos e trânsito dos irmãos
esclarecidos, em vésperas de reencarnação.
– Como assim? – perguntou Vicente, admirado.
– Pois não sabia? As regiões inferiores, entre “Nosso Lar” e
os círculos da carne, são tão grandes que exigem uma estrada
ampla e bem cuidada, requerendo também conservação, como as
importantes rotas terrestres. Por lá, obstáculos físicos; por cá,
obstáculos espirituais. As vias de comunicação normais destinamse
a intercâmbio indispensável. Os que se encontram nas tarefas
da nossa rotina sagrada precisam livre trânsito e os que se dirigem
da. esfera superior à reencarnação devem seguir com a harmonia
possível, sem contacto direto com as expressões dos círculos mais
baixos. A absorção de elementos inferiores determinaria sérios
desequilíbrios no renascimento deles. Há que evitar semelhantes
distúrbios. Nós, porém, seguimos numa expedição de aprendizado
e experiência. Não devemos, por isso, preferir os caminhos mais
fáceis.
Identificando-nos a perplexidade, Aniceto concluiu:
– Imaginemos um rio de imensas proporções. separando duas
regiões diferentes. Existe o vau que oferece transporte rápido e há
passagens diversas através de fundos precipícios.
Pela expressão do bondoso instrutor, concluí que ele poderia
voltar à colônia quando quisesse, que não encontraria obstáculos
de qualquer ordem, em parte alguma, em razão do poder espiritual
de que se achava revestido, mas fazia-se peregrino, como nós, por
devotamento à missão de ensinar. Vicente e eu não dispúnhamos
de expressão vibratória adequada aos grandes feitos. Éramos
vulgares, quanto o era a maioria dos habitantes da nossa cidade
espiritual. Possuíamos apenas alguns princípios de volitação;
contudo, permanecíamos muito distantes do verdadeiro poder.
Nunca vira, pois, a energia e a humildade em tão belo consórcio.
Aniceto dirigia-nos, firmemente, como orientador de pulso,
vigoroso e sábio, mas não vacilava em se fazer igual a nós,
a fim de servir como devotado companheiro.
Meditando sobre a lição sublime, em pleno impulso volitante,
contemplei as torres de “Nosso Lar”, que iam ficando a distância...
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