CAPITULO II
Os réprobos
Em geral aqueles que se arrojam ao suicídio, para sempre esperam livrar-se de dissabores julgados insuportáveis, de sofrimentos e problemas considerados insolúveis
pela tibiez da vontade deseducada, que se acovarda em presença, muitas vezes, da
vergonha do descrédito ou da desonra, dos remorsos deprimentes postos a enxovalharem
a consciência, conseqüências de ações praticadas à revelia das leis do Bem e da Justiça.
Também eu assim pensei, muito apesar da auréola de idealista que minha vaidade acreditava glorificando-me a fronte.
Enganei-me, porém; e lutas infinitamente mais vivas e mais ríspidas esperavam-me dentro do túmulo a fim de me chicotearem a alma de descrente e revel, com merecida
justiça.
As primeiras horas que se seguiram ao gesto brutal de que usei, para comigo mesmo, passaram-se sem que verdadeiramente eu pudesse dar acordo de mim. Meu Espírito, rudemente violentado, como que desmaiara, sofrendo ignóbil colapso. Os sentidos, as faculdades que traduzem o "eu" racional, paralisaram-se como se indescritível cataclismo houvesse desbaratado o mundo, prevalecendo, porém, acima dos
destroços, a sensação forte do aniquilamento que sobre meu ser acabara de cair. Fora
como se aquele estampido maldito, que até hoje ecoa sinistramente em minhas vibrações
mentais -, sempre que, descerrando os véus da memória, como neste instante, revivo o passado execrável - tivesse dispersado uma a uma as moléculas que em meu ser
constituíssem a Vida!
A linguagem humana ainda não precisou inventar vocábulos bastante justos e
compreensíveis para definir as impressões absolutamente inconcebíveis, que passam a
contaminar o "eu" de um suicida logo às primeiras horas que se seguem ao desastre, as quais sobem e se avolumam, envolvem-se em complexos e se radicam e cristalizam num
crescendo que traduz estado vibratório e mental que o homem não pode compreender,
porque está fora da sua possibilidade de criatura que, mercê de Deus, se conservou aquém dessa anormalidade. Para entendê-la e medir com precisão a intensidade dessa dramática surpresa, só outro Espírito cujas faculdades se houvessem queimado nas
efervescências da mesma dor!
Nessas primeiras horas, que por si mesmas constituiriam a configuração do abismo em que se precipitou, se não representassem apenas o prelúdio da diabólica
sinfonia que será constrangido a interpretar pelas disposições lógicas das leis naturais que violou, o suicida, semi-inconsciente, adormentado, desacordado sem que, para maior suplício, se lhe obscureça de todo a percepção dos sentidos, sente-se dolorosamente contundido, nulo, dispersado em seus milhões de filamentos psíquicos violentamente
atingidos pelo malvado acontecimento. Paradoxos turbilhonam em volta dele, afligindo-lhe a tenuidade das percepções com martirizantes girândolas de sensações confusas. Perde-se no vácuo... Ignora-se...Não obstante aterra-se, acovarda-se, sente a profundidade apavorante do erro contra o qual colidiu, deprime-se na aniquiladora certeza de que
ultrapassou os limites das ações que lhe eram permitidas praticar, desnorteia-se entrevendo que avançou demasiadamente, para além da demarcação traçada pela Razão! É o traumatismo psíquico, o choque nefasto que o dilacerou com suas tenazes inevitáveis, e o qual, para ser minorado, dele exigirá um roteiro de urzes e lágrimas,
decênios de rijos testemunhos até que se reconduza às vias naturais do progresso, interrompidas pelo ato arbitrário e contraproducente.
Pouco a pouco, senti ressuscitando das sombras confusas em que mergulhei meu pobre Espírito, após a queda do corpo físico, o atributo máximo que a Paternidade Divina impôs sobre aqueles que, no decorrer dos milênios, deverão refletir Sua imagem e
semelhança; - a Consciência! a Memória! o divino dom de pensar!
Senti-me enregelar de frio. Tiritava! Impressão incômoda, de que vestes de gelo se me apegavam ao corpo, provocou-me inavaliável mal-estar. Faltava-me, ao demais, o ar para o livre mecanismo dos pulmões, o que me levou a crer que, uma vez que eu me
desejara furtar à vida, era a morte que se aproximava com seu cortejo de sintomas
dilacerantes.
Odores fétidos e nauseabundos, todavia, revoltavam-me brutalmente o olfato. Dor aguda, violenta, enlouquecedora, arremeteu-se instantaneamente sobre meu corpo por
inteiro, localizando-se particularmente no cérebro e iniciando-se no aparelho auditivo.
Presa de convulsões indescritíveis de dor física, levei a destra ao ouvido direito: - o sangue corria do orifício causado pelo projétil da arma de fogo de que me servira para o suicídio e manchou-me as mãos, as vestes, o corpo... Eu nada enxergava, porém.
Convém recordar que meu suicídio derivou-se da revolta por me encontrar cego, expiação
que considerei superior às minhas forças. Injusta punição da natureza aos meus olhos necessitados de ver, para que me fosse dado obter, pelo trabalho, a subsistência honrada
e ativa. Sentia-me, pois, ainda cego; e, para cúmulo do meu estado de desorientação, encontrava-me ferido. Tão somente ferido e não morto! Porque a vida continuava em mim como antes do suicídio!
Passei a reunir idéias, mau grado meu. Revi minha vida em retrospecto, até à infância, e sem mesmo omitir o drama do último ato, programação extra sob minha inteira
responsabilidade. Sentindo-me vivo, averiguei conseqüentemente, que o ferimento que
em mim mesmo fizera, tentando matar-me, fora insuficiente, aumentando assim os já tão
grandes sofrimentos que desde longo tempo me vinham perseguindo a existência. Supus-me preso a um leito de hospital ou em minha própria casa. Mas a impossibilidade de reconhecer o local, pois nada via; os incômodos que me afligiam, a solidão que me
rodeava, entraram a me angustiar profundamente, enquanto lúgubres pressentimentos me avisavam de que acontecimentos irremediáveis se haviam confirmado. Bradei por
meus familiares, por amigos que eu conhecia afeiçoados bastante para me acompanharem em momentos críticos. O mais surpreendente silêncio continuou enervando-me. Indaguei mal-humorado por enfermeiros, por médicos que possivelmente
me atenderiam, dado que me não encontrasse em minha residência e sim retido em algum hospital; por serviçais, criados, fosse quem fosse, que me obsequiar pudessem,
abrindo as janelas do aposento onde me supunha recolhido, a fim de que correntes de ar purificado me reconfortassem os pulmões; que me favorecessem coberturas quentes,
acendessem a lareira para amenizar a gelidez que me entorpecia os membros, providenciando bálsamo às dores que me supliciavam o organismo, e alimento, e água, porque eu tinha fome e tinha sede!
Com espanto, em vez das respostas amistosas por que tanto suspirava, e que minha audição distinguiu, passadas algumas horas, foi um vozerio ensurdecedor, que, indeciso e longínquo a princípio, como a destacar-se de um pesadelo, definiu-se gradativamente até positivar-se em pormenores concludentes. Era um coro sinistro, de
muitas vozes confundidas em atropelos, desnorteadas, como aconteceria numa assembléia de loucos.
No entanto, estas vozes não falavam entre si, não conversavam. Blasfemavam, queixavam-se de múltiplas desventuras, lamentavam-se, reclamavam, uivavam, gritavam
enfurecidas, gemiam, estertoravam, choravam desoladoramente, derramando pranto hediondo, pelo tono de desesperação com que se particularizava; suplicavam, raivosas,
socorro e compaixão!
Aterrado senti que estranhos empuxões, como arrepios irresistíveis, transmitiam-me influenciações abomináveis, provindas desse todo que se revelava através da
audição, estabelecendo corrente similar entre meu ser superexcitado e aqueles cujo vozerio eu distinguia. Esse coro, isócrono, rigorosamente observado e medido em seus
intervalos, infundiu-me tão grande terror que, reunindo todas as forças de que poderia o meu Espírito dispor em tão molesta situação, movimentei-me no intuito de afastar-me de
onde me encontrava para local em que não mais o ouvisse.
Tateando nas trevas tentei caminhar. Mas dir-se-ia que raízes vigorosas plantavam-me naquele lugar úmido e gelado em que me deparava. Não podia despega-me Sim! Eram cadeias pesadas que me escravizavam, raízes cheias de seiva, que me
atinham grilhetado naquele extraordinário leito por mim desconhecido, impossibilitando-me o desejado afastamento. Aliás, como fugir se estava ferido, desfazendo-me em
hemorragias internas, manchadas as vestes de sangue, e cego, positivamente cego?!
Como apresentar-me a público em tão repugnante estado?...
A covardia - a mesma hidra que me atraíra para o abismo em que agora me convulsionava – alongou ainda mais seus tentáculos insaciáveis e colheu-me irremediavelmente! Esqueci-me de que era homem, ainda uma segunda vez! e que cumpria lutar para tentar vitória, fosse a que preço fosse de sofrimento! Reduzi-me por
isso à miséria do vencido! E, considerando insolúvel a situação, entreguei-me às lágrimas e chorei angustiosamente, ignorando o que tentar para meu socorro. Mas, enquanto me desfazia em prantos, o coro de loucos, sempre o mesmo, trágico, funéreo, regular como o
pêndulo de um relógio, acompanhava-me com singular similitude, atraindo-me como se emanado de irresistíveis afinidades... Insisti no desejo de me furtar à terrível audição.
Após esforços desesperados, levantei-me. Meu corpo enregelado, os músculos retesados
por entorpecimento geral, dificultavam-me sobremodo o intento. Todavia, levantei-me. Ao
fazê-lo, porém, cheiro penetrante de sangue e vísceras putrefatos reacendeu em torno, repugnando-me até às náuseas. Partia do local exato em que eu estivera dormindo. Não
compreendia como poderia cheirar tão desagradavelmente o leito onde me achava. Para mim seria o mesmo que me acolhia todas as noites! E, no entanto, que de odores fétidos me surpreendiam agora! Atribui o fato ao ferimento que fizera na intenção de matar-me, a fim de explicar-me de algum modo a estranha aflição, ao sangue que corria, manchando-me as vestes. Realmente! Eu me encontrava empastado de peçonha, como um lodo
asqueroso que dessorasse de meu próprio corpo, empapando incomodativamente a indumentária que usava, pois, com surpresa, surpreendi-me trajando cerimoniosamente,
não obstante retido num leito de dor. Mas, ao mesmo tempo que assim me apresentava satisfações, confundia-me na interrogação de como poderia assim ser, visto não ser
cabível que um simples ferimento, mesmo a quantidade de sangue espargido, pudesse tresandar a tanta podridão, sem que meus amigos e enfermeiros deixassem de
providenciar a devida higienização. Inquieto, tateei na escuridão com o intuito de encontrar a porta de saída que me
era habitual, já que todos me abandonavam em hora tão critica. Tropecei, porém, em
dado momento, num montão de destroços e, instintivamente, curvei-me para o chão, a
examinar o que assim me interceptava os passos. Então, repentinamente, a loucura irremediável apoderou-se de minhas faculdades e entrei a gritar e uivar qual demônio
enfurecido, respondendo na mesma dramática tonalidade à macabra sinfonia cujo coro de vozes não cessava de perseguir minha audição, em intermitências de angustiante
expectativa.
O montão de escombros era nada menos do que a terra de uma cova
recentemente fechada!
Não sei como, estando cego, pude entrever, em meio as sombras que me
rodeavam, o que existia em torno! Eu me encontrava num cemitério! Os túmulos, com suas tristes cruzes em
mármore branco ou madeira negra, ladeando imagens sugestivas de anjos pensativos, alinhavam-se na imobilidade majestosa do drama em que figuravam.
A confusão cresceu: - Por que me encontraria ali? Como viera, pois nenhuma lembrança me acorria?... E o que viera fazer sozinho, ferido, dolorido, extenuado?... Era
verdade que "tentara" o suicídio, mas...
Sussurro macabro, qual sugestão irremovível da Consciência esclarecendo a
memória aturdida pelo ineditismo presenciado, percutiu estrondosamente pelos recôncavos alarmados do meu ser:
"Não quiseste o suicídio?... Pois aí o tens..." Mas, como assim?... Como poderia
ser... se eu não morrera?!... Acaso não me sentia ali vivo?... Por que então sozinho, imerso na solidão tétrica da morada dos mortos?!...
Os fatos irremediáveis, porém, impõem-se aos homens como aos Espíritos com majestosa naturalidade. Não concluíra ainda minhas ingênuas e dramáticas interrogações, e vejo-me, a mim próprio! como à frente de um espelho, morto, estirado
num ataúde, em franco estado de decomposição, morto dentro de uma sepultura, justamente aquela sobre a qual acabava de tropeçar!
Fugi espavorido, desejoso de ocultar-me de mim mesmo, obsidiado pelo mais tenebroso horror, enquanto gargalhadas estrondosas, de indivíduos que eu não lograva enxergar, explodiam atrás de mim e o coro nefasto perseguia meus ouvidos torturados,
para onde quer que me refugiasse. Como louco que realmente me tornara, eu corria, corria, enquanto aos meus olhos cegos se desenhava a hediondez satânica do meu próprio cadáver apodrecendo no túmulo, empastado de lama gordurosa, coberto de
asquerosas lesmas que, vorazes, lutavam por saciar em suas pústulas a fome inextinguível que traziam, transformando-o no mais repugnante e infernal monturo que me fora dado conhecer!
Quis furtar-me à presença de mim mesmo, procurando incidir no ato que me desgraçara, isto é - reproduzi a cena patética do meu suicídio mentalmente, como se por uma segunda vez buscasse morrer a fim de desaparecer na região do que, na minha
ignorância dos fatos de além-morte, eu supunha o eterno esquecimento! Mas nada havia capaz de aplacar a malvada visão! Ela era, antes, verdadeira! Imagem perfeita da realidade que sobre o meu físico espiritual se refletia, e por isso me acompanhava para
onde quer que eu fosse, perseguia minhas retinas sem luz, invadia minhas faculdades anímicas imersas em choques e se impunha à minha cegueira de Espírito caído em
pecado, supliciando-me sem remissão!
Na fuga precipitada que empreendi, ia entrando em todas as portas que encontrava abertas, a fim de ocultar-me em alguma parte. Mas de qualquer domicílio a que me abrigasse, na insensatez da loucura que me enredava, era enxotado a pedradas sem poder distinguir quem, com tanto desrespeito, assim me tratava. Vagava pelas ruas
tateando aqui, tropeçando além, na mesma cidade onde meu nome era endeusado como o de um gênio - sempre aflito e perseguido. A respeito dos acontecimentos que com minha pessoa se relacionavam, ouvi comentários destilados em críticas mordazes e
irreverentes, ou repassados de pesar sincero pelo meu trespasse, que lamentavam.
Tornei a minha casa. Surpreendente desordem estabelecera-se em meus
aposentos, atingindo objetos de meu uso pessoal, meus livros, manuscritos e apontamentos, os quais já não eram por mim encontrados no local costumeiro, o que muito me enfureceu. Dir-se-ia que se dispersara tudo! Encontrei-me estranho em minha
própria casa! Procurei amigos, parentes a quem me afeiçoara. A indiferença que lhes surpreendi em torno da minha desgraça chocou-me dolorosamente, agravando meu estado de excitação. Dirigi-me então a consultórios médicos. Tentei fixar-me em hospitais, pois que sofria, sentia febre e loucura, supremo mal-estar torturava meu ser, reduzindo-me a desolador estado de humilhação e amargura. Mas, a toda parte que me dirigia,
sentia-me insocorrido, negavam-me atenções, despreocupados e indiferentes todos ante minha situação. Em vão objurgatórias azedas saíam de meus lábios acompanhadas da apresentação, por mim próprio feita, do meu estado e das qualidades pessoais que meu incorrigível orgulho reputava irresistíveis: - pareciam alheios às minhas insistentes algaravias, ninguém me concedendo sequer o favor de um olhar!
Aflito, insofrido, alucinado, absorvido meu ser pelas ondas de agoirantes amarguras, em parte alguma encontrava possibilidade de estabilizar-me a fim de lograr conforto e alívio! Faltava-me alguma coisa irremediável, sentia-me incompleto! Eu perdera
algo que me deixava assim, entonteado, e essa "coisa" que eu perdera, parte de mim mesmo, atraía-me para o local em que se encontrava, com as irresistíveis forças de um ímã, chamava--me imperiosa, irremediavelmente! E era tal a atração que sobre mim
exercia, tal o vácuo que em mim produzira esse irreparável acontecimento, tão profunda a afinidade, verdadeiramente vital, que a essa "coisa" me unia - que, não sendo possível,
de forma alguma, fixar-me em nenhum local para que me voltasse, tornei ao sítio tenebroso de onde viera: - o cemitério!
Essa "coisa", cuja falta assim me enlouquecia, era o meu próprio corpo - o meu cadáver! – apodrecendo na escuridão de um túmulo!
(3) Certa vez, há cerca de vinte anos, um dos meus dedicados educadores espirituais - Charles - levou-me a um cemitério público do Rio de Janeiro, a fim de visitarmos um suicida que rondava os próprios despojos em putrefação. Escusado será esclarecer que tal visita foi realizada em corpo astral. O perispírito do referido
suicida, hediondo qual demônio, infundiu-me pavor e repugnância. Apresentava-se completamente desfigurado e irreconhecível, coberto de cicatrizes, tantas cicatrizes quantos haviam sido os pedaços a que ficara reduzido seu envoltório carnal, pois o desgraçado jogara-se sob as rodas de um trem de ferro, ficando
despedaçado. Não há descrição possível para o estado de sofrimento desse Espírito! Estava enlouquecido,
atordoado, por vezes furioso, sem se poder acalmar para raciocinar, insensível a toda e qualquer vibração que não fosse a sua imensa desgraça! Tentamos falar-lhe: - não nos ouvia! E Charles, tristemente, cacento indefinível de ternura, falou: - "Aqui, só a prece terá virtude capaz de se impor! Será o único bálsamo
que poderemos destilar em seu favor, santo bastante para, após certo período de tempo, poder aliviá-lo... -
E essas cicatrizes? - perguntei, impressionada. - "Só desaparecerão - tornou Charles - depois da expiação do erro, da reparação em existências amargas, que requererão lágrimas ininterruptas, o que não levará menos de um século, talvez muito mais... Que Deus se amerceie dele, porque, até lá..." Durante muitos
anos orei por esse infeliz irmão em minhas preces diárias. - (Nota da médium) Debrucei-me, soluçante e inconsolável, sobre a sepultura que me guardava os míseros despojos corporais, e estorci-me em apavorantes convulsões de dor e de raiva,
rebolcando-me em crises de furor diabólico, compreendendo que me suicidara, que estava sepultado, mas que, não obstante, continuava vivo e sofrendo mais, muito mais do
que sofria antes, superlativamente, monstruosamente mais do que antes do gesto covarde e impensado!
Cerca de dois meses vaguei desnorteado e tonto, em atribulado estado de incompreensão. Ligado ao fardo carnal que apodrecia, viviam em mim todas as imperiosas necessidades do físico humano, amargura que, aliada aos demais incômodos, me levava a constantes desesperações. Revoltas, blasfêmias, crises de furor acometiam-me como se o próprio inferno soprasse sobre mim suas nefastas inspirações, assim coroando as vibrações maléficas que me circulavam de trevas. Via fantasmas
perambulando pelas ruas do campo santo, não obstante minha cegueira, chorosos e aflitos, e, por vezes, terrores inconcebíveis sacudiam-me o sistema vibratório a tal ponto que me reduziam a singular estado de desmaio, como se, sem forças para continuar
vibrando, minhas potências anímicas desfalecessem!
Desesperado em face do extraordinário problema, entregava-me cada vez mais ao desejo de desaparecer, de fugir de mim mesmo a fim de não mais interrogar-me sem lograr lucidez para responder, incapaz de raciocinar que, em verdade, o corpo físico material modelado do limo putrescível da Terra, fora realmente aniquilado pelo suicídio; e que o que agora eu sentia confundir-se com ele, porque solidamente a ele unido por leis naturais de afinidade que o suicídio absolutamente não destrói, era o físico-espiritual,
indestrutível e imortal, organização viva, sem imaterial fadada a elevados destinos, a porvir glorioso no seio do progresso infindável, relicário onde se arquivam, qual o cofre
que encerrasse valores, nossos sentimentos e atos, nossas realizações e pensamentos,
envoltório que é da centelha sublime que rege o homem, isto é, a Alma eterna e imortal como Aquele que de Si Mesmo a criou!
Certa vez em que ia e vinha, tateando pelas ruas, irreconhecível a amigos e admiradores, pobre cego humilhado no além-túmulo graças à desonra de um suicídio; mendigo na sociedade espiritual, faminto na miséria de Luz em que me debatia; angustiado fantasma vagabundo, sem lar, sem abrigo no mundo imenso, no mundo
infinito dos Espíritos; exposto a perigos deploráveis, que também os há entre desencarnados; perseguido por entidades perversas, bandoleiros da erraticidade, que gostam de surpreender, com ciladas odiosas, criaturas nas condições amargurosas em
que me via, para escravizá-las e com elas engrossar as fileiras obsessoras que desbaratam as sociedades terrenas e arruínam os homens levando-os às tentações mais torpes, através de influenciações letais - ao dobrar de uma esquina deparei com certa
multidão, cerca de duzentas individualidades de ambos os sexos. Era noite. Pelo menos eu assim o supunha, pois, como sempre, as trevas envolviam-me, e eu, tudo o que venho narrando, percebia mais ou menos bem dentro da escuridão, como se enxergasse mais
pela percepção dos sentidos do que mesmo pela visão. Aliás, eu me considerava cego, mas não me explicando até então como, destituído do inestimável sentido, possuía, não obstante, capacidade para tantas torpezas enxergar, ao passo que não a possuía sequer
para reconhecer a luz do Sol e o azul do firmamento! Essa multidão, entretanto, era a mesma que vinha concertando o coro sinistro que me aterrava, tendo-a eu reconhecido porque, no momento em que nos encontramos, entrou a uivar desesperadamente,
atirando aos céus blasfêmias diante das quais as minhas seriam meros gracejos!
Tentei recuar, fugir, ocultar-me dela, apavorado por me tornar dela conhecido.
Porém, porque marchasse em sentido contrário ao que eu seguia, depressa me envolveu, misturando-me ao seu todo para absorver-me completamente em suas ondas! Fui levado de roldão, empurrado, arrastado mau grado meu; e tal era a aglomeração que me perdi totalmente em suas dobras. Apenas me inteirava de um fato, porque isso mesmo ouvia rosnarem ao redor, e era que estávamos todos guardados por soldados, os quais nos
conduziam. A multidão acabava de ser aprisionada! A cada momento juntava-se, a ela outro e outro vagabundo, como acontecera comigo, e que do mesmo modo não mais
poderiam sair. Dir-se-ia que esquadrão completo de milicianos montados conduzia-nos à prisão. Ouviam-se as patadas dos cavalos sobre o lajedo das ruas e lanças afiadas
luziam na escuridão, impondo temor.
Protestei contra a violência de que me reconhecia alvo. Em altas vozes bradei que
não era criminoso e dei-me a conhecer, enumerando meus títulos e qualidades. Mas os cavaleiros, se me ouviam, não se dignavam responder. Silenciosos, mudos, eretos,
marchavam em suas montadas fechando-nos em círculo intransponível! A frente o comandante, abrindo caminho dentro das trevas, empunhava um bastão no alto do qual
flutuava pequena flâmula, onde adivinhávamos uma inscrição. Porém eram tão acentuadas as sombras que não poderíamos lê-la, ainda que o desespero que nos vergastava permitisse pausa para manifestarmos tal desejo.
A caminhada foi longa. Frio cortante enregelava-nos. Misturei minhas lágrimas e meus brados de dor e desespero ao coro horripilante e participei da atroz sinfonia de
blasfêmias e lamentações. Pressentíamos que bem seguros estávamos, que jamais poderíamos escapar! Tocados vagarosamente, sem que um único monossílabo
lográssemos arrancar aos nossos condutores, começamos, finalmente, a caminhar penosamente por um vale profundo, onde nos vimos obrigados a enfileirar-nos de dois a
dois, enquanto faziam idêntica manobra os nossos vigilantes.
Cavernas surgiram de um lado e outro das ruas que se diriam antes estreitas
gargantas entre montanhas abruptas e sombrias, e todas numeradas. Tratava-se, certamente, de uma estranha -"povoação", uma "cidade" em que as habitações seriam cavernas, dada a miséria de seus habitantes, os quais não possuiriam cabedais
suficientes para torná-las agradáveis e facilmente habitáveis. O que era certo, porém, é que tudo ali estava por fazer e que seria bem aquela a habitação exata da Desgraça! Não se distinguiria terreno, senão pedras, lamaçais ou pântanos, sombras, aguaceiros... Sob
os ardores da febre excitante da minha desgraça, cheguei a pensar que, se tal região não fosse um pequeno recôncavo da Lua, existiriam por lá, certamente, locais muito
semelhantes...
Internavam-nos cada vez mais naquele abismo... Seguíamos, seguíamos... E, finalmente, no centro de grande praça encharcada qual um pântano, os cavaleiros fizeram alto. Com eles estacou a multidão. Em meio do silêncio que repentinamente se estabeleceu, viu-se que a soldadesca voltava sobre os próprios passos a fim de retirar-se. Com efeito! Um a um vimos que se afastavam todos nas curvas tortuosas das vielas lamacentas, abandonando-nos ali.
Confusos e atemorizados seguimos ao seu encalço, ansiosos por nos afastarmos também. Mas foi em vão! As ruelas, as cavernas e os pântanos se sucediam, baralhandose num labirinto em que nos perdíamos, pois, para onde nos dirigíssemos, depararíamos
sempre o mesmo cenário e a mesma topografia. Inconcebível terror apossou-se da estranha malta. Por minha vez, não poderia sequer pensar ou refletir, procurando solução para o momento. Sentia-me como que envolvido nos tentáculos de horrível pesadelo, e,
quanto maiores esforços tentava para racionalmente explicar-me o que se passava,
menos compreendia os acontecimentos e mais apoucado me confessava no assombro
esmagador! Meus companheiros eram hediondos, como hediondos também se mostravam os demais desgraçados que nesse vale maldito encontráramos, os quais nos receberam
entre lágrimas e estertores idênticos aos nossos. Feios, deixando ver fisionomias alarmadas pelo horror; esquálidos, desfigurados pela intensidade dos sofrimentos; desalinhados, inconcebivelmente trágicos, seriam irreconhecíveis por aqueles mesmos
que os amassem, aos quais repugnariam! Pus-me a bradar desesperadamente,
acometido de odiosa fobia do Pavor. O homem normal, sem que haja caído nas garras da demência, não será capaz de avaliar o que entrei a padecer desde que me capacitei de que o que via não era um sonho, um pesadelo motivado pela deplorável loucura da
embriaguez! Não! Eu não era um alcoólatra para assim me surpreender nas garras de tão perverso delírio! Não era tampouco o sonho, o pesadelo, a criar em minha mente,
prostituída pela devassidão dos costumes, o que aos meus olhos alarmados por infernal surpresa se apresentava como a mais pungente realidade que os infernos pudessem inventar - a realidade maldita, assombrosa, feroz! - criada por uma falange de réprobos do
suicídio aprisionada no meio ambiente cabível ao seu crítico e melindroso estado, como cautela e caridade para como gênero humano, que não suportaria, sem grandes confusões e desgraças, a intromissão de tais infelizes em sua vida cotidiana! (4)
(4) Efetivamente, no além-túmulo, as vibrações mentais longamente viciadas do alcoólatra, do sensual, do cocainômano, etc., etc., poderão criar e manter visões e ambientes nefastos, pervertidos. Se, além do mais, trazem os desequilíbrios de um suicídio, a situação poderá atingir proporções Inconcebíveis.
Sim! Imaginai uma assembléia numerosa de criaturas disformes - homens e mulheres –caracterizada pela alucinação de cada uma, correspondente a casos íntimos, trajando, todos, vestes como que empastadas do lodo das sepulturas, com feições
alteradas e doloridas estampando os estigmas de sofrimentos cruciantes! Imaginai uma localidade, uma povoação envolvida em densos véus de penumbra, gélida e asfixiante, onde se aglomerassem habitantes de além-túmulo abatidos pelo suicídio, ostentando, cada um, o ferrete infame do gênero de morte escolhido no intento de ludibriar a Lei Divina – que lhes concedera a vida corporal terrena como precioso ensejo de progresso,
inavaliável instrumento para a remissão de faltas gravosas do pretérito! Pois era assim a multidão de criaturas que meus olhos assombrados deparavam nas trevas que lhes eram favoráveis ao terrível gênero de percepção, esquecido, na insânia do orgulho que a mim era próprio, que também eu pertencia a tão repugnante
todo, que era igualmente um feio alucinado, um pastoso ferreteado!
Eu via por aqui, por ali, estes traduzindo, de quando em quando, em cacoetes nervosos, as ânsias do enforcamento, esforçando-se, com gestos instintivos, altamente emocionantes, por livrarem o pescoço, intumescido e violado, dos farrapos de cordas ou
de panos que se refletiam nas repercussões perispirituais, em vista das desarmoniosas vibrações mentais que permaneciam torturando-os! Aqueles, indo e vindo como loucos,
em correrias espantosas, bradando por socorro em gritos estentóricos, julgando-se, de momento a momento, envolvidos em chamas, apavorando-se com o fogo que lhes devorava o corpo físico e que, desde então, ardia sem tréguas nas sensibilidades sem imateriais do perispírito! Estes últimos, porém, eu notava serem, geralmente, mulheres.
Eis que apareciam outros ainda: o peito ou o ouvido, ou a garganta banhados em
sangue, oh! Sangue inalterável, permanente, que nada conseguia verdadeiramente fazer desaparecer das sutilezas do físico-espiritual senão a reencarnação expiatória e reparadora! Tais infelizes, além das múltiplas modalidades de penúrias por que se viam
atacados, deixavam-se estar preocupados sempre, a tentarem estancar aquele sangue jorrante, ora com as mãos, ora com as vestes ou outra qualquer coisa que supunham ao
alcance, sem no entanto jamais o conseguirem, pois tratava-se de um deplorável estado mental, que os incomodava e impressionava até ao desespero! A presença destes desgraçados impressionava até à loucura, dada a inconcebível dramaticidade dos gestos
isócronos, inalteráveis, a que, mau grado próprio, se viam forçados! E ainda estoutros sufocando-se na bárbara asfixia do afogamento, bracejando em ânsias furiosas à procura de algo que os pudesse socorrer, tal como sucedera à hora extrema e que suas mentes
registraram, ingerindo água em gorgolejos ininterruptos, exaustivos, prolongando indefinidamente cenas de agonia selvagem, as quais olhos humanos seriam incapazes de presenciar sem se tingirem de demência! Porém havia mais ainda!... E o leitor perdoe à minha memória estas minudências talvez desinteressantes para o seu bom-gosto literário, mas úteis, certamente, como advertência ao seu possível caráter impetuoso, chamado a viver as inconveniências de
um século em que o "morbus" terrível do suicídio se tornou mal endêmico. Não pretendemos, aliás, apresentar obra literária para deleitar gosto e temperamento artísticos. Cumprimos um dever sagrado, tão-somente, procurando falar aos que sofrem,
dizendo a verdade sobre o abismo que, com malvadas seduções, há perdido muita alma descrente em meio dos desgostos comuns à vida de cada um! Entretanto, bem próximo ao local em que me encurralara procurando refugiar-me da récua sinistra, destacava-se, por fealdade impressionante, meia dúzia de desgraçados
que haviam procurado o "olvido eterno", atirando-se sob as rodas de um trem de ferro.
Trazendo os perispíritos desfigurados, dir-se-iam a armadura de monstruosa aberração, as vestes em farrapos esvoaçantes, cobertos de cicatrizes sanguinolentas, retalhadas,
confusas, num emaranhado de golpes e sobre golpes, tal se fotografada fora, naquela placa sensível e sutil, isto é, o perispírito, a deplorável condição a que o suicídio lhes reduzira o envoltório carnal - esse templo, ó meu Deus, que o Divino Mestre recomenda
como veículo precioso e eficiente para nos auxiliar na caminhada em busca das gloriosas conquistas espirituais! Enlouquecidos por sofrimentos superlativos, possuídos da suprema aflição que atingir possa a alma originada da centelha divina, representando aos olhos
pávidos do observador o que o Invisível inferior mantém de mais trágico, mais emocionante e horrível, esses desgraçados uivavam em lamentações tão dramáticas e impressionantes que imediatamente contagiavam com suas influenciações dolorosas
quem quer que se encontrasse indefenso em seu caminho, o qual entraria a co-participar da loucura inconsolável de que se acompanhavam... pois o terrível gênero de suicídio,
dos mais deploráveis que temos a registrar em nossas páginas, abalara-lhes tão violenta e profundamente a organização nervosa e sensibilidades gerais do corpo astral, congêneres daquela que traumatizara a todas, entorpecendo, graças à brutalidade usada,
até mesmo os valores da inteligência, que, por isso mesmo, jazia incapaz de orientar-se, dispersa e confusa em meio do caos que se formara ao redor de si! A mente edifica e produz. O pensamento - já bastante vezes declararam - é criador, e, portanto, fabrica, corporifica, retém imagens por si mesmo engendradas,
realiza, segura o que passou e, com poderosas garras, conserva-o presente até quando desejar!
Cada um de nós, no Vale Sinistro, vibrando violentamente e retendo com as forças mentais o momento atroz em que nos suicidamos, criávamos os cenários e respectivas cenas que vivêramos em nossos derradeiros momentos de homens terrestres. Tais cenas, refletidas ao redor de cada um, levavam a confusão à localidade,
espalhavam tragédia e inferno por toda a parte, seviciando de aflições superlativas os desgraçados prisioneiros. Assim era que se deparavam, aqui e ali, forcas erguidas,baloiçando o corpo do próprio suicida, que evocava a hora em que se precipitara na morte
voluntária. Veículos variados, assim como comboios fumegantes e rápidos, colhiam e
trituravam, sob suas rodas, míseros tresloucados que buscaram matar o próprio corpo por
esse meio execrável, os quais, agora, com a mente "impregnada" do momento sinistro, retratavam sem cessar o episódio, pondo à visão dos companheiros afins suas hediondas
recordações. (4-A)
(4-A) Em várias sessões práticas a que tivemos ocasião de assistir em organizações espíritas do Estado de Minas Gerais, os videntes eram concordes em afirmar que não percebiam apenas o Espírito
atribulado do suicida a comunicar-se, mas também a cena do próprio suicídio, desvendando-se às suas faculdades mediúnicas o momento supremo da trágica ocorrência. - (Nota da médium)
Rios caudalosos e mesmo trechos alongados de oceano surgiam repentinamente no meio daquelas vielas sombrias: - era meia dúzia de réprobos que passava enlouquecida, deixando à mostra cenas de afogamento, por arrastarem na mente conflagrada a trágica lembrança de quando se atiraram às suas águas!... Homens e
mulheres transitavam desesperados: uns ensangüentados, outros estorcendo-se no suplício das dores pelo envenenamento, e, o que era pior, deixando à mostra o reflexo
das entranhas carnais corroídas pelo tóxico ingerido, enquanto outros mais, incendiados, a gritarem por socorro em correrias insensatas, traziam pânico ainda maior entre os
companheiros de desgraça, os quais receavam queimar-se ao seu contacto, todos possuídos de loucura coletiva! E coroando a profundeza e intensidade desses inimagináveis martírios - as penas morais: os remorsos, as saudades dos seres amados,
dos quais se não tinham notícias, os mesmos dissabores que haviam dado causa ao desespero e que persistiam em afligir!... E as penas físico-materiais: - a fome, o frio, a sede, exigências fisiológicas em geral, torturantes, irritantes, desesperadoras! a fadiga, a
insônia depressora, a fraqueza, o delíquio! Necessidades imperiosas, desconforto de toda espécie, insolúveis, a desafiarem possibilidades de suavização - oh! a visão insidiosa e inelutável do cadáver apodrecendo, seus fétidos asquerosos, a repercussão, na mente
excitada, dos vermes a consumirem o lodo carnal, fazendo que o desgraçado mártir se supusesse igualmente atacado de podridão!
Coisa singular! Essa escória trazia, pendente de si, fragmentos de cordão luminoso, fosforescente, o qual, despedaçado, como arrebentado violentamente, desprendia-se em estilhas qual um cabo compacto de fios elétricos arrebentados, a desprenderem fluidos que deveriam permanecer organizados para determinado fim. Ora,
esse pormenor, aparentemente insignificante, tinha, ao contrário, importância capital, pois era justamente nele que se estabelecia a desorganização do estado de suicida. Hoje sabemos que esse cordão fluídico-magnético, que liga a alma ao envoltório carnal e lhe
comunica a vida, somente deverá estar em condições apropriadas para deste separar-se por ocasião da morte natural, o que então se fará naturalmente, sem choques, sem violência. Com o suicídio, porém, uma vez partido e não desligado, rudemente arrancado,
despedaçado quando ainda em toda a sua pujança fluídica e magnética, produzirá grande parte dos desequilíbrios, senão todos que vimos anotando, uma vez que, na constituição
vital para a existência que deveria ser, muitas vezes, longa, a reserva de forças magnéticas não se haviam extinguido ainda, o que leva o suicida a sentir-se um "morto-vivo" na mais expressiva significação do termo. Mas, na ocasião em que pela primeira vez
o notáramos, desconhecíamos o fato natural, afigurando-se-nos um motivo a mais para confusões e terrores.
Tão deplorável estado de coisas, para a compreensão do qual o homem não possui vocabulário nem imagens adequadas, prolonga-se até que as reservas de forças vitais e magnéticas se esgotem, o que varia segundo o grau de vitalidade de cada um. O
próprio caráter individual influi na prolongação do melindroso estado, quando o padecente for mais ou menos afeito às atrações dos sentidos materiais, grosseiros e inferiores. É pois um complexo que se estabelece, que só o tempo, com extensa cauda de
sofrimentos, conseguirá corrigir.
Um dia, profundo alquebramento sucedeu em meu ser a prolongada
excitação. Fraqueza insólita conservou-me aquietado, como desfalecido. Eu e muitos outros cômpares de minha falange estávamos extenuados, incapazes de resistirmos por
mais tempo a tão desesperadora situação. Urgência de repouso fazia-nos desmaiar freqüentemente, obrigando-nos ao recolhimento em nossas desconfortáveis cavernas.
Não se tinham passado, porém, sequer vinte e quatro horas desde que o novo estado nos surpreendera, quando mais uma vez fomos alarmados pelo significativo rumor daquele mesmo "comboio" que já em outras ocasiões havia aparecido em nosso Vale.
Eu compartilhava o mesmo antro residencial de quatro outros indivíduos, como eu portugueses, e, no decorrer do longo martírio em comum, tornáramo-nos inseparáveis, à força de sofrermos juntos no mesmo tugúrio de dor. Dentre todos, porém,
um sobremaneira me irritava, predispondo-me à discussão, com o usar, apesar da situação precária, o monóculo inseparável, o fraque bem talhado e respectiva bengala de castão de ouro, conjunto que, para o meu conceito neurastênico e impertinente, o tornava
pedante e antipático, num local onde se vivia torturado com odores fétidos e podridão e em que nossa indumentária dir-se-ia empastada de estranhas substâncias gordurosas, reflexos mentais da podridão elaborada em torno do envoltório carnal. Eu, porém,
esquecia-me de que continuava a usar o "pince-nez" com seu fio de torçal, a sobrecasaca dos dias cerimoniosos, os bigodes fartos penteados... Confesso que, então, apesar da longa convivência, lhes não conhecia os nomes. No Vale Sinistro a desgraça é ardente
demais para que se preocupe o calceta com a identidade alheia...
O conhecido rumor aproximava-se cada vez mais... Saímos de um salto para a rua... Vielas e praças encheram-se de réprobos
como das passadas vezes, ao mesmo tempo que os mesmos angustiosos brados de socorro ecoavam pelas quebradas sombrias, no intuito de despertarem a atenção dos que
vinham para a costumeira vistoria...
Até que, dentro da atmosfera densa e penumbrosa, surgiram os carros brancos, rompendo as trevas com poderosos holofotes.
Estacionou o trem caravaneiro na praça lamacenta. Desceu um pelotão de lanceiros. Em seguida, damas e cavalheiros, que pareciam enfermeiros, e mais o chefe
da expedição, o qual, como anteriormente esclarecemos, se particularizava por usar turbante e túnica hindus.
Silenciosos e discretos iniciaram o reconhecimento daqueles que seriam socorridos. A mesma voz austera que se diria, como das vezes anteriores, vibrar no ar, fez, pacientemente, a chamada dos que deveriam ser recolhidos, os quais, ouvindo os
próprios nomes, se apresentavam por si mesmos.
Outros, porém, por não se apresentarem a tempo, impunham aos socorristas a necessidade de procurá-los. Mas a estranha voz indicava o lugar exato em que estariam
os míseros, dizendo simplesmente:
Abrigo número tal... Rua número tal...
Ou, conforme a circunstância:
- Dementado... Inconsciente... Não se encontra no abrigo... Vagando em tal
rua... Não atenderá pelo nome... Reconhecível por esta ou aquela particularidade...
Dir-se-ia que alguém, de muito longe, assestava poderosos telescópios até nossas desgraçadas moradas, para assim informar detalhadamente do momento decorrente a expedição laboriosa...
Os obreiros da Fraternidade consultavam um mapa, iam rapidamente ao local indicado e traziam os mencionados, alguns carregados em seus braços generosos, outros
em padiolas...
De súbito ressoou na atmosfera dramática daquele inferno onde tanto padeci,
repercutindo estrondosamente pelos mais profundos recôncavos do meu ser, o meu nome, chamado para a libertação! Em seguida, ouviram-se os dos quatro companheiros
que comigo se achavam presentes na praça. Foi então que lhes conheci os nomes e eles o meu.
Disse a voz longínqua, como servindo-se de desconhecido e poderoso altofalante:
- Abrigo número 36 da rua número 48 - Atenção!... Abrigo número 36 -
Ingressar no comboio de socorro - Atenção!... - Camilo Cândido Botelho - Belarmino de
Queiroz e Souza - Jerônimo de Araújo Silveira - João d'Azevedo - Mário Sobral -
Ingressarem no comboio... (4-B)
(4-B) Perdoar-me-á o leitor o não transcrever na integra os nomes destas personagens, tal como foram revelados pelo autor destas páginas. - (Nota da médium)
Foi entre lágrimas de emoção indefinível que galguei os pequenos degraus da plataforma que um enfermeiro indicava, atencioso e paciente, enquanto os policiais fechavam cerco em torno de mim e de meus quatro companheiros, evitando que os
desgraçados que ainda ficavam subissem conosco ou nos arrastassem no seu turbilhão, criando a confusão e retardando por isso mesmo o regresso da expedição. Entrei. Eram carros amplos, cômodos, confortáveis, cujas poltronas
individuais como que estofadas com arminho branco apresentavam o espaldar voltado
para os respiradores, que dir-se-iam os óculos das modernas aeronaves terrenas. Ao
centro quatro poltronas em feitio idêntico, onde se acomodaram enfermeiros, tudo
indicando que ali permaneciam a fim de guardar-nos. Nas portas de entrada lia-se a
legenda entrevista antes, na flâmula empunhada pelo comandante do pelotão de guardas:
Legião dos Servos de Maria
Dentro em pouco a tarefa dos abnegados legionário estava cumprida. Ouviuse no interior o tilintar abafado de uma campainha, seguido de movimento rápido de
suspensão de pontes de acesso e embarque dos obreiros. Pelo menos foi essa a série de
imagens mentais que concebi...
O estranho comboio oscilou sem que nenhuma sensação de galeio e o mais leve balanço impressionassem nossa sensibilidade. Não contivemos as lágrimas, porém, em ouvindo o ensurdecedor coro de blasfêmias, a grita desesperada e selvagem dos desgraçados que ficavam, por não suficientemente desmaterializados ainda para
atingirem camadas invisíveis menos compactas.
Eram senhoras que nos acompanhavam, por nós velando durante a viagem.
Falaram-nos com doçura, convidando-nos ao repouso, afirmando-nos solidariedade.
Acomodaram-nos cuidadosamente nas almofadas das poltronas, quais desveladas, bondosas irmãs de Caridade...
Afastava-se o veículo... A pouco e pouco a cerração de cinzas se ia
dissipando aos nossos olhos torturados, durante tantos anos, pela mais cruciante das cegueiras: - a da consciência culpada!
Apressava-se a marcha... O nevoeiro de sombras ficava para trás como pesadelo maldito que se extinguisse ao despertar de um sono penoso... Agora as estradas eram amplas e retas, a se perderem de vista... A atmosfera fazia-se branca como neve... Ventos fertilizantes sopravam, alegrando o ar...
Deus Misericordioso!... Havíamos deixado o Vale Sinistro!...
Lá ficara ele, perdido nas trevas do abominável!... Lá ficara, incrustado nos abismos invisíveis criados pelo pecado dos homens, a fustigar a alma daquele que se esqueceu do seu Deus e Criador!
Comovido e pávido, pude, então, elevar o pensamento à Fonte Imortal do Bem Eterno, para humildemente agradecer a grande mercê que recebia!
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