Ânsia por solidão
sofrimento, à toda hora, em todos os atos triviais do cotidiano, cria muitas vezes uma
ânsia irresistível de escapar dessa permanente comunhão compulsória, ao menos
por algum tempo. A gente é tomado pelo desejo profundo de ficar sozinho consigo
mesmo e com os próprios pensamentos, pela saudade de um lugar de recolhimento
e solidão.
Eu já me encontrava em outro campo na Baviera, num assim chamado campo de
repouso, no qual pude então finalmente trabalhar como médico durante uma grande
epidemia de tifo exantemático. Durante certo período tive ali a felicidade de poder
retirar-me para a tão almejada solidão, ao menos por alguns minutos. Atrás do
galpão de enfermos, um barracão de chão batido em que se amontoavam cerca de
cinqüenta companheiros com febre alta, delirantes, havia um cantinho sossegado,
onde a cerca dupla de arame farpado que circunda o campo formava uma esquina.
Ali tinham improvisado com algumas estacas e galhos uma espécie de barraca na
qual se jogava a meia dúzia de cadáveres "produzidos" diariamente em nosso
campo - que era considerado pequeno! Havia ali no chão uma abertura de acesso à
canalização subterrânea, fechada com tampa de madeira. Nesta eu me sentava,
sempre que me podiam dispensar por alguns minutos como médico no galpão.
Aninhado ali, eu contemplava por entre a vinheta obrigatória do arame farpado - os
vastos campos verdejantes e floridos, as distantes colinas azuis da paisagem
bávara. Ali eu sonhava os sonhos de minha saudade e enviava meus pensamentos
para bem longe, para o norte e nordeste, onde supunha pessoas amadas. Agora,
porém, somente enxergava ali nuvens de perfil estranho e bizarro. Atirados a meu
lado os cadáveres cheios de piolhos não chegavam a me perturbar. Arrancavam-me
dos meus sonhos apenas os passos do vigia a patrulhar periodicamente a cerca de
arame farpado, ou talvez um chamado do galpão a me mandar para a enfermaria
central a fim de receber medicamentos recém-chegados para a minha estação de
quarentena: cinco ou dez comprimidos de um sucedâneo de Aspirina, ou Cardiazol,
para tratar cinqüenta pacientes durante vários dias. Ia buscá-los e fazia então a
"visitação": de companheiro a companheiro, sentindo-lhes o pulso e dando meio
comprimido nos casos graves. Mas os casos extremos não recebiam medicação
nenhuma; ela ficava reservada para aqueles que ainda tinham chances de cura. Aos
casos mais leves eu nada podia dar, a não ser talvez uma palavra de apoio. Assim
eu me arrastava de um companheiro até outro, debilitado e desgastado fisicamente
ao extremo, uma vez que eu mesmo havia pouco estivera gravemente enfermo de
tifo exantemático. Em seguida me retirava novamente por um momento em solidão,
e me assentava mais uma vez sobre a tampa de madeira do hidrante subterrâneo.
Esta, aliás, certa vez salvou a vida de três companheiros. Pouco antes da
libertação houve transportes em massa (alegava-se, para Dachau), dos quais três
companheiros meus, precavidamente, quiseram safar-se. Entraram por aquela
abertura e ali se esconderam da guarda do campo que esquadrinhava todo o
terreno. Naqueles minutos de ansiedade, eu mesmo, aparentando serenidade
exterior, fiquei sentado sobre a tampa da abertura, diligentemente ignorando os
guardas a procurar desconfiados. Parece que, num primeiro momento, tiveram
suspeitas e queriam levantar a tampa. Mudaram, porém, de idéia e passaram por
mim, sentado ali a olhar inocente e tranqüilo, atirando pedrinhas na cerca, fingindo
ares de quem não quer nada com nada. Um guarda, que me viu daquele jeito,
hesitou por um segundo, mas foi só. Desarmado que foi em sua suspeita, pelo quadro que se lhe apresentava, continuou a sua busca. Logo pude avisar aos três
companheiros lá no fundo que já passara o maior dos perigos.
Joguete do destino
Quem não vivenciou pessoalmente a situação reinante num campo de concentração não faz a menor idéia da radical insignificância a que se reduz o valor
da vida do indivíduo ali internado. A pessoa com isso perde a sensibilidade, e no
máximo ainda se dava conta desse desprezo pela existência de indivíduos humanos
quando se organizavam transportes de enfermos. Os destinados para o transporte,
aqueles corpos consumidos, são simplesmente jogados em cima de carretas de
duas rodas, puxadas então pelos próprios prisioneiros, quilômetros a fio, em plena
nevasca. Se alguém já estava morto, tinha que ir junto assim mesmo. A lista tinha
que conferir! A lista é o principal, a pessoa somente importa na medida em que tem
um número de prisioneiro, representando literalmente apenas um número. Viva ou
morta - não vem ao caso. A "vida" do "número" é irrelevante. O que está por trás
deste número, o que representa esta vida, é menos importante ainda: o destino - a
história - o nome de uma pessoa. Por exemplo, naquele transporte de doentes em
que, na qualidade de médico, fui transferido de um campo bávaro para outro, havia
um jovem companheiro que teria de deixar para trás seu irmão, porque este não
estava na lista. Ficou pedinchando junto ao chefe do campo até que este resolveu
trocar um que estava na lista, mas queria cair fora no último instante, pelo tão amado
irmão. Mas a lista precisava ser cumprida! Nada mais fácil: o irmão simplesmente
adotou o número de prisioneiro, nome e sobrenome do companheiro que ficaria em
seu lugar, e vice-versa; pois, como já mencionamos, todos no campo de
concentração há muito já não mais possuíam seus documentos, e cada um se dava
por feliz quando podia considerar propriamente seu nada mais que este seu
organismo ainda a respirar, apesar de tudo. O resto, o que ainda pendia sobre a
esquálida pele desses semi-esqueletos em farrapos, só interessava ainda aos que
ficavam para trás. Com olho clínico e indisfarçada curiosidade, eram vistoriados os
"muçulmanos" destacados para o transporte, a fim de verificar se seus sapatos e
suas capas não estavam ainda em estado um pouco melhor que os próprios. Afinal
de contas, o seu destino estava selado. Entretanto, para aqueles que podiam ficar e
tinham relativas condições de trabalhar, valia tudo que servisse para aumentar a sua
chance de sobrevivência. Sentimentais é que não eram. . .
A perda da sensação de ainda ser sujeito humano é agravada pelo fato de a
pessoa no campo de concentração experimentar-se a si mesma não só como mero
objeto do arbítrio da guarda, mas também como objeto e joguete do destino. Eu
sempre fora da opinião e costumava dizer que, apenas passados cinco ou dez anos,
é que a pessoa saberia dizer para que foi útil determinado fato em sua vida. O
campo de concentração me ensinou algo diferente. Muitas vezes já ficamos sabendo
cinco ou dez minutos depois para que foi bom. Já em Auschwitz eu estabeleci um
princípio para mim mesmo cuja validade se revelaria muito cedo e o qual, a seguir,
foi também acolhido pela maioria dos meus companheiros. Quando me perguntavam
alguma coisa, eu dava uma resposta verdadeira, de modo geral. Mas sobre aquilo
que não era objeto de pergunta, eu me calava. Se alguém perguntava por minha
profissão, eu lhe respondia "médico", mas não fazia menção de ser especialista, a
não ser que, perguntassem por minha especialidade. Durante a primeira manhã em
Auschwitz um oficial da SS se fez presente na hora de entrarmos em forma para a
chamada. Os companheiros com menos de quarenta anos deviam postar-se de um
lado, os acima de quarenta, de outro; metalúrgicos, mecânicos de automóvel, etc.,
por seu turno, deviam entrar numa formação à parte. Em seguida tivemos que baixar
as calças para exame de hérnia, sendo que desta vez outros companheiros foram
separados. Um grupo foi tocado para outro barracão, onde devia entrar em forma
mais uma vez. Fui junto. Mais uma vez fomos selecionados, e eu, por exemplo,
depois de ter respondido as perguntas "Profissão? Idade?" de forma rápida e
enérgica, fui destacado para um pequeno grupo à parte. E também este grupo foi
tocado para outro barracão, onde logo fomos mais uma vez reagrupados. E assim
por diante, até que afinal já me sentia muito decepcionado ao me ver lançado entre
pessoas estranhas, todas elas estrangeiras e falando línguas que eu não conhecia.
Nisso foi feita uma última seleção, sendo eu tocado com os escolhidos para um
último barracão. Eis que me vejo com meus velhos companheiros, entre meus
conterrâneos e colegas, naquele barracão do qual saíra originalmente! E nem
tinham percebido que entrementes eu fora tocado para lá e para cá. Eu, entretanto,
imaginei de quantas sinas possíveis eu escapara no espaço de poucos minutos. . .
Ao se organizar o mencionado transporte de enfermos para um "campo de
repouso", incluíram meu número na lista: estavam precisando de alguns médicos,
mas ninguém acreditava que o transporte seguisse realmente para um campo de
repouso. Afinal, ninguém mais era ingênuo. Aquele mesmo transporte já estivera
previsto para algumas semanas antes, e já então ninguém acreditara que fosse para
um campo de repouso, mas sim para a câmara de gás. Repentinamente foi dado um
aviso: quem quisesse, poderia ser riscado da lista dos enfermos em repouso, caso
se apresentasse voluntariamente para trabalhar no (muito temido) turno da noite.
Oitenta e dois companheiros se acusaram sem pestanejar. Quinze minutos depois
ouvia-se o anúncio: Transporte cancelado. Aqueles oitenta e dois, no entanto, não
mais escaparam da lista para o turno da noite! Para a maioria deles o trabalho
noturno significou a morte dentro dos próximos quatorze dias."
O último desejo - decorado
Desta feita era composto pela segunda vez o transporte para o campo de repouso.
Agora ninguém mais sabia se era ou não uma finta para extrair dos enfermos o
último resto de força para trabalhar, mesmo que só por quatorze dias. Ou seriam as
câmaras de gás o destino? Ou, quem sabe, de fato o campo de repouso? - O
médico-chefe se dava bem comigo. Às quinze para as dez da noite ele me segredou:
"Avisei no escritório que você ainda pode ser riscado da lista. Você pode fazê-lo até
às dez horas da noite." Dou-lhe a entender que isto não é do meu feitio que aprendi
a seguir o caminho reto ou - como se queira - deixar o destino ir em frente. "Vou ficar
com meus companheiros doentes", é o que lhe digo. Percebo seu olhar penalizado,
como se tivesse um pressentimento. . . Sem dizer uma palavra, ele me estende a
mão, como se fosse uma despedida, não por toda a vida, e sim da minha vida. . .
Saio. A passos lentos volto para o meu barracão. Um bom amigo está sentado no
meu lugar. "Você vai mesmo?" "Sim, vou". Seus olhos se enchem de lágrimas.
Procuro consolá-lo. Mas preciso fazer outra coisa: meu testamento oral... - "Cuide
bem, Otto, se eu não voltar para casa, para minha mulher, e se você voltar a vê-la...
diga a ela o seguinte, cuide bem: em primeiro lugar que falei sobre ela todos os dias
e a cada instante - Você lembra? Segundo: jamais amei alguém tanto quanto a ela.
Terceiro: ser casado com ela tão pouco tempo, esta felicidade compensou tudo,
inclusive o que tivemos que passar aqui..." - Otto, onde estás agora? Vives ainda?
Que aconteceu contigo desde aquele último momento em que estivemos juntos?
Reencontraste tua esposa? Lembras-te ainda como te obriguei, apesar de teu choro
infantil, a decorar meu testamento oral, palavra por palavra?
Na manhã seguinte parti com o transporte. Desta vez não foi nenhuma finta nem
truque. Este transporte também não seguiu para as câmaras de gás, mas realmente
para um campo de repouso. E aqueles que tiveram tanta pena de mim, ficaram no
campo de antes, onde então a fome grassou com muito mais violência que em
nosso novo campo. Acharam estar se salvando, mas ficaram em maior desgraça.
Meses depois, já após a libertação, encontrei novamente aquele companheiro do
campo anterior, o qual, na qualidade de "policial", havia confiscado de uma panela o
pedaço de carne que faltou naqueles dias num depósito de cadáveres daquele
campo. . . É que ali irrompera o canibalismo, mas desse inferno eu havia escapado
em tempo.
Isto me lembra de uma velha história da morte em Teerã. Estava um persa rico e
poderoso passeando certa vez pelo parque de sua casa, em companhia de seu
criado. Este se põe a lamentar que acabou de ver a morte ameaçando levá-lo. O
criado implora a seu amo que lhe dê o cavalo mais rápido para se pôr imediatamente
a caminho e fugir rumo a Teerã, onde ele queria chegar naquela mesma noite. O
amo lhe dá o cavalo e o criado parte a galope. Caminhando de volta para casa, o
próprio amo se depara com a morte e passa a interrogá-la: "Por que assustaste meu
criado desta forma, por que o ameaçaste?" Responde-lhe a morte: "Ora, não o
ameacei! Nem quis assustá-lo. Apenas me admirei, surpresa com o fato de vê-lo
aqui, pois devo encontrá-lo em Teerã ainda hoje à noite!"
Plano de fuga
O sentimento predominante de ser mero joguete, e o princípio de não assumir o
papel do destino, mas de deixar ao destino o seu livre curso, tudo isso, e ainda a
profunda apatia que se apodera da pessoa no campo de concentração, são fatores
que explicam por que ela evita qualquer tipo de iniciativa e teme tomar decisões. A
vida no campo de concentração apresenta situações que exigem decisões súbitas e
imediatas, e que muitas vezes representam decisões sobre o ser ou não ser. O
prisioneiro então prefere que o destino o livre da obrigação de decidir-se.
Esta fuga ante a decisão pode ser muita bem observada quando o prisioneiro
precisa decidir se foge ou não. Naqueles minutos (e a cada vez somente podem ser
poucos os minutos nos quais precisa tomar a decisão) ele passa por horrível tortura
interior: Será que tento fugir, ou não? Devo assumir o risco, ou não? Eu mesmo
também experimentei este purgatório de tensão interior ao surgir uma oportunidade
de fuga poucos dias antes de aproximar-se a frente de combate. Um companheiro
que precisava prestar serviços médicos em Banacses situados fora do campo era a
favor da fuga. Ele insistia em fugir comigo. A pretexto de uma consulta conjunta para
um não-prisioneiro, para a qual ele alegou necessitar-me urgentemente como
especialista, demos um jeito de sair do campo. Lá fora um membro secreto de uma
organização de resistência estrangeira nos forneceria uniformes e papéis falsos. No
último momento, entretanto, surgiram dificuldades de ordem técnica, e tivemos que
voltar para o campo. Aproveitamos a oportunidade para apanhar algumas batatas
meio podres, como provisão para o caminho, e principalmente precisávamos arranjar
uma mochila para cada um. Para este fim penetramos num barracão vazio do campo
de mulheres, que acabara de ser evacuado, tendo elas sido levadas para outro
campo. Um caos inimaginável se nos apresentou neste barracão. Estava tudo numa
grande bagunça, e se podia ver claramente que muitas mulheres haviam fugido.
Trapos e palha, restos estragados de comida e louça quebrada. Mas preferimos não
levar nem mesmo tigelas em bom estado que via de regra, eram consideradas
objetos de alto valor no campo de concentração. Sabíamos bem que ultimamente
quando passaram a reinar as piores condições possíveis no campo de
concentração, essas tigelas de sopa costumavam ser usadas não só para a mesa,
mas também como lavatórios e urinóis. (Era rigorosamente proibido ter no barracão
qualquer vasilha para as necessidades fisiológicas; entretanto esta proibição foi
simplesmente ignorada por todos aqueles que, durante a epidemia de tifo
exantemático, estavam prostrados com febre alta e que nem com auxílio de outros
podiam ser levados à noite para a latrina, dada a sua grande debilidade física.).
Enquanto fico de guarda lá fora, meu colega penetra sorrateiramente no
abandonado barracão de mulheres. Pouco depois ele sai, todo contente, mostrando
disfarçadamente, porém com muito orgulho, a mochila que traz escondida debaixo
da capa. Diz que ainda viu outra lá dentro e que devo buscá-la para mim. Ele fica de
guarda, e eu entro no barracão. Ao vasculhar os montes de objetos desordenados,
encontro, para minha grande alegria e surpresa, ainda antes de dar com a outra
mochila, uma velha escova de dentes; nisto, vejo, em meio aos objetos
evidentemente deixados para trás na precipitação da fuga, um cadáver de mulher. .
Volto apressado para o meu barracão a fim de apanhar todos os meus pertences:
minha tigela de sopa, algumas luvas esfarrapadas que "herdei" de um paciente
falecido naquele barracão de tifo exantemático, e algumas dezenas de papeizinhos
nos quais eu passara a reconstruir com anotações estenográficas o meu manuscrito
científico perdido em Auschwitz às pressas ainda faço uma visitação e percorro pela
última vez a ala direita e depois a esquerda de pacientes deitados sobre tábuas
podres, apertados um contra o outro, de ambos os lados do corredor e no meio do
barracão. Chego ao único conterrâneo meu, que jaz ali às portas da morte. Salvá-lo,
apesar do seu estado muito crítico, tinha sido para mim uma questão de honra. É
claro que tenho que manter em segredo o meu plano de fuga. Mesmo assim o meu
companheiro parece suspeitar de alguma coisa. É possível que eu estivesse um
pouco nervoso. Em todo o caso, ele me pergunta com voz muito débil: "Você
também vai cair fora?" Digo que não. Mas não consigo mais afastar-me dele, do seu
olhar. Após a visitação, volto para ele. E mais uma vez se fixa em mim aquele olhar
sem esperança - e de alguma forma o sinto como repreensão. Cada vez mais cresce
aquele sentimento incômodo que se apoderou de mim a partir do momento em que
concordei em fugir com meu colega - procedendo contra o meu velho princípio de
não assumir o papel do destino. De repente saio do barracão rumo à enfermaria
para avisar o meu colega que não posso ir. Nem bem lhe declarara que não podia
mais contar comigo, mal tomara eu a decisão de continuar com os pacientes como
antes, deixei de sentir, de um momento para o outro, aquela intranqüilidade! Fico
sem saber o que virá nos dias seguintes; interiormente, porém, sereno como nunca,
a passo firme, volto para o meu barracão de tifo exantemático, sento-me sobre as
tábuas, aos pés do meu conterrâneo, procuro consola-lo e fico batendo papo com os
outros companheiros, tranqüilizando-os.
Chegou então o último dia em nosso campo de concentração. Quase todos os
internados haviam sido levados em transportes maciços para outros campos, visto
que se aproximava a frente de combate. Os graúdos do campo, os Capos e os
cozinheiros haviam fugido. Foi dado o aviso de que à noite o campo teria que ser
completamente evacuado, incluindo os últimos prisioneiros que restavam - que
eram, sem exceção, doentes e alguns poucos médicos e "enfermeiros". Constava
ainda da comunicação que à noite o campo seria incendiado. Acontece, porém, que
à tarde ainda haviam chegado os caminhões que deveriam buscar os doentes.
Súbito, trancaram hermeticamente a saída do campo e passaram a vigiar
rigorosamente a cerca de arame farpado, de modo que ninguém mais pudesse
cruzá-la em algum ponto já meio "preparado". Aparentemente queriam incendiar o
campo com os prisioneiros restantes lá dentro. Pela segunda vez o meu colega e eu
resolvemos fugir.
Existem três cadáveres para enterrar fora da cerca. Recebemos a incumbência de
fazê-lo. É que, afora nós dois, não há mais ninguém naquele campo que tenha
forças para isso. Quase todos jazem prostrados, com febre alta e delírio, nos poucos
barracões ainda ocupados. Então tomamos a decisão: com o primeiro cadáver
contrabandeamos a mochila do companheiro, dentro da velha tina usada como
maca e caixão. Com o segundo cadáver, levamos minha mochila. Com o terceiro
corpo, nós mesmos fugimos. Conseguimos executar bem o nosso plano até o
segundo cadáver. Mas antes de levar o terceiro tenho de esperar. Meu colega
avisou que tentaria arranjar algum pedaço de pão para comermos nos dias
seguintes na floresta. Fico esperando. Passam-se os minutos, cresce minha
impaciência – e ele continua não aparecendo. Logo agora, quando eu já estava
antegozando a liberdade, pela primeira vez, depois de três anos, iríamos ao
encontro da frente de batalha... Somente mais tarde saberíamos que risco enorme
teria sido este encontro. Aí, no instante em que meu colega finalmente aparece
correndo, abre-se o portão de entrada do campo, e lentamente avança um magnífico
automóvel cor de alumínio, ostentando grandes cruzes vermelhas, indo em direção
da área de formatura dos prisioneiros. Chega o Delegado da Cruz Vermelha
Internacional de Genebra para tomar sob sua proteção o campo e os seus últimos
reclusos. Quem ainda pensaria em fugir? Do interior do carro saem caixas de
remédios, cigarros são distribuídos, somos fotografados e a alegria é geral. Agora já
não precisamos tentar atravessar as frentes de combate.
O delegado se hospeda na casa de um agricultor, próximo ao campo, pois quer
estar disponível à noite, para qualquer caso. Naquele primeiro arroubo de alegria
tínhamos esquecido completamente o terceiro cadáver. Agora o levamos para fora e
o deixamos rolar para dentro da estreita sepultura que lhe cavamos. O guarda que
nos acompanha e supervisiona, de uma hora para outra, é a amabilidade em
pessoa. Ele começa a perceber que as coisas agora podem tomar outro rumo e
procura contato conosco. Em todo o caso ele toma parte na breve oração que
pronunciamos antes de fazer cair a terra sobre o cadáver. Após aquela nossa tensão
interior e o nervosismo dos últimos dias e horas, nessa reta final em nossa corrida
com a morte, as palavras com que suplicamos paz na nossa oração devem ter sido
das mais ardentes que um ser humano jamais pronunciou.
Assim passa este dia, o último em nosso campo, na vivência de uma liberdade
interiormente antecipada. Porém a nossa expectativa falhou num ponto. Apesar de o
representante da Cruz Vermelha afirmar, com base numa convenção, que o campo
não poderia mais ser evacuado, e a despeito da sua presença no lugarejo próximo,
à noite chegam caminhões com integrantes da SS dando a ordem de desocupar o
campo imediatamente. Dão-nos a entender que os últimos prisioneiros restantes
devem ser transportados para um campo central, de onde, dentro de 48 horas,
seriam levados para a Suíça e trocados por prisioneiros de guerra.
O pessoal da SS está irreconhecível, tal a amabilidade com que insistem para que
subamos sem medo nos caminhões e nos alegremos com a chance que nos seria
dada. Quem ainda tem forças já corre para os caminhões. Com muito sacrifício os
gravemente enfermos e totalmente enfraquecidos são erguidos para a plataforma da
viatura. Meu colega e eu já não escondemos nossas mochilas e nos colocamos de
pé, prontos a ser incluídos entre treze pessoas a serem levadas pelo último
caminhão. O médico-chefe é que faz a distribuição. Estamos ali de pé, e somos quinze pessoas. Ao contar os treze que irão, ele nos deixa fora. Os treze são postos
no caminho, enquanto nós dois que ficamos para trás, surpresos, decepcionados e
indignados ao partir a penúltima leva, nos queixamos ao médico chefe. Ele se
desculpa alegando estar exausto e distraído; por engano ele teria achado que ainda
pensávamos em fugir. Tomados de impaciência, sentamo-nos novamente, mas de
mochila às costas, e com os prisioneiros restantes ficamos esperando o último
caminhão. A espera é muito longa. Deitamo-nos sobre os catres desocupados da
enfermaria, completamente desgastados que estamos pela "guerra de nervos" das
últimas horas e dias, pelas esperanças despertadas a se alterar sucessivamente
com desilusão, pelo vaivém entre alegria imensa e tristeza mortal. Estamos "prontos"
para a viagem adormecemos sem trocar de roupa nem tirar os sapatos. Acordamos
com o barulho de tiros de canhão e fuzil, o clarão de foguetes sinalizadores, o sibilo
de balas atravessando até as paredes do barracão. O médico-chefe entra correndo
e nos manda buscar cobertura no chão. Do beliche acima de mim o companheiro
pula com os sapatos em cima da minha barriga. Agora, sim, estou bem acordado.
Logo sabemos o que está havendo: chegou a frente de combate! O tiroteio vai
diminuindo até parar por completo. A noite cede ao crepúsculo. Lá fora o mastro no
portão principal do campo ostenta uma bandeira branca. Apenas semanas mais
tarde é que nós, o reduzido e último grupo daquele campo, ficamos sabendo que até
mesmo naquelas horas derradeiras o "destino" nos fizera mais uma vez de joguete;
experimentamos a ambigüidade de toda decisão, ainda mais quando justamente
vida ou morte estão em jogo. Quanto àqueles que naquela última noite julgaram que
os caminhões os levariam rumo à liberdade, tivemos que pensar mais uma vez
naquele conto que fala da morte em Teerã. Semanas mais tarde tive diante de mim
fotografias tiradas num pequeno campo não muito distante do nosso, para onde
haviam levado os meus pacientes; trancaram-nos em barracões, que foram
incendiados. As fotografias mostravam os cadáveres semi-carbonizados.
Irritabilidade
Até aqui descrevemos a apatia, a dessensibilização do íntimo, que toma conta do
prisioneiro durante a sua estada no campo de concentração, fazendo a sua vida
anímica baixar, de modo geral, a um nível mais primitivo, tornando objeto do destino
ou do arbítrio dos guardas, destituído de vontade, tanto que ele acaba cheio de
medo de tomar nas mãos o seu destino, ou seja, de enfrentar decisões. A apatia tem
ainda outras causas e não pode ser entendida apenas como mecanismo de
autodefesa da alma, no sentido mencionado. Há também causas de natureza
fisiológica. É o que vale também para a irritabilidade, a qual, além da apatia,
representa uma das mais eminentes características da psique do prisioneiro. Entre
as causas fisiológicas estão em primeiro lugar a fome e a falta de sono. Como
qualquer um sabe, mesmo na vida normal ambos os fatores tornam a pessoa
apática e irritadiça. No campo de concentração, o sono insuficiente se deve em parte
aos insetos parasitas a proliferar livremente na mais inconcebível falta de higiene, e
à inimaginável concentração de pessoas nos barracões.
Existe ainda outro fator a contribuir para a apatia e a irritabilidade, que é a ausência
daqueles tóxicos da civilização que normalmente servem para atenuá-las, isto é, a
nicotina e a cafeína. Aumenta, assim, a propensão para a apatia e a irritabilidade.
Além das causas fisiológicas existem ainda origens anímicas deste peculiar estado
de espírito dos prisioneiros. Trata-se de certos "complexos". É compreensível que a
maioria dos prisioneiros seja atormentada por uma espécie de sentimento de
inferioridade. Antes, cada um de nós havia sido "alguém", ou ao menos julgava sê-lo. Agora, no entanto, é tratado literalmente como se fosse um ninguém. (Não há dúvida de que o amor-próprio, quando ancorado em áreas mais profundas,
espirituais, não pode ser abalado pela situação do campo de concentração; mas
quantas pessoas, quantos prisioneiros possuirão um sentimento de auto-estima tão
bem firmado?) Mesmo sem refletir muito sobre isso, sem que se conscientize disso,
é natural que o prisioneiro mediano se sinta totalmente rebaixado. Esta experiência
somente se fazia sentir diante do contraste evidenciado na peculiar estrutura
sociológica do campo de concentração. Refiro-me àquela minoria de prisioneiros que
passavam, a bem dizer, por gente importante, os Capos e cozinheiros, os chefes de
depósito e os "policiais" do campo. Em todos eles havia uma compensação do
sentimento primitivo de inferioridade. É que estes não se sentiam rebaixados de
maneira alguma, como "a maioria" dos prisioneiros comuns, mas sentiam-se como
se sente um arrivista. Alguns se sentiam até como um César em miniatura. A reação
anímica da maioria, ressentida e invejosa, ao comportamento daquela minoria, se
manifestava de diversas formas, às vezes também em piadas maldosas. Assim, por
exemplo, um prisioneiro diz a outro, referindo-se a um terceiro, que é um desses
"arrivistas". "Esse aí eu conheci quando era apenas presidente do maior banco de...
Agora ele se promoveu a Capo.
Sempre que essa maioria dos rebaixados e a minoria dos arrivistas entravam em
conflito, explodia a irritação, que logo chegava ao auge. Para esses encontros
conflitivos havia oportunidades mais que suficientes na vida do campo de
concentração, a começar pela distribuição de comida. Aquela irritabilidade, de cujas
origens fisiológicas diversas falamos acima, acaba por se potenciar com o acréscimo
das causas anímicas, a complexa carga de sentimentos de todos os envolvidos. Já
não causa surpresa que o acúmulo assim originado acabe em pancadaria entre os
prisioneiros. Aquele reflexo que, da emoção raivosa vai extravasar-se no golpe
físico, já está basicamente pré-condicionado pelos freqüentes espancamentos que o
recluso testemunha a cada instante. Eu mesmo passei repetidas vezes pela
experiência de sentir a mão "solta", prestes a perder o controle quando, faminto e
tresnoitado, era acometido de raiva súbita. Entre outras razões, eu estava
tresnoitado porque, durante determinado período, pudemos fazer fogo para aquecer
o nosso barracão de chão batido que servia de galpão de tifo, e precisávamos cuidar
que não apagasse o fogo no fogão. Aqueles entre nós que ainda estavam em
condições relativamente boas eram obrigados a participar de um serviço noturno
destinado a atender ao fogão. Apesar de tudo, foram horas das mais idílicas as que
vivi quando, em plena noite, enquanto os outros dormiam ou deliravam de febre eu
me estirava no chão batido frente ao pequeno fogão do barracão, cuidando do fogo
naquelas horas do meu turno, assando umas batatas furtadas nas brasas do carvão
igualmente furtado. . . Porém, tanto mais tresnoitado, apático e irritadiço a gente se
sentia no outro dia. Na época, eu trabalhava como médico, tratando tifo pouco antes
da nossa libertação, e tinha que substituir ainda o chefe de bloco, que estava
doente. Consequentemente eu era responsável, perante a administração, do campo,
pela higiene no barracão - na medida em que se podia manter qualquer higiene
dentro daquelas circunstâncias. A pretensa inspeção periódica do barracão tinha por
objetivo não verificar as condições higiênicas, mas sim torturar-nos. Mais alimento
ou um pouco de medicamento teriam dado efeito - mas o que lhes importava era,
apenas, que não houvesse uma palhinha no corredor, e que os esfarrapados,
encardidos e empiolhados cobertores dos enfermos apresentassem um alinhamento
perfeito ao pé da cama. Uma vez anunciada a inspeção, eu tinha de cuidar que o
chefe ou subchefe do campo de concentração, ao enfiar a cabeça pela porta do nosso barracão para dar uma espiada em seu interior, não percebesse sequer uma
palha, nem resto de cinza na frente do fogão, etc. A inspeção não se importava com
a sorte das pessoas que habitavam aquele buraco. Importante era que eu tirasse da
cabeça raspada o barrete de prisioneiro, batesse os calcanhares e anunciasse em
tom marcial: "Barracão de enfermaria VI/9, cinqüenta e dois doentes de tifo
exantemático, dois enfermeiros, um médico." E já iam embora os inspetores. Mas
até que eles viessem (e costumavam vir muitas horas depois de anunciado, ou
simplesmente não vinham), eu me via forçado a ficar constantemente arrumando
cobertores, catando palhas que caíam das tarimbas e, para completar, ralhar com os
pobres diabos que quisessem comprometer no último momento toda aquela ordem e
limpeza aparentes. Pois a apatia e insensibilidade, ainda mais acentuadas nos
acometidos de febre, os faz reagir apenas quando se grita com eles. Mas até isso
muitas vezes não adianta, e então o negócio mesmo é controlar-se com o maior
esforço para não "sentar a mão". Pois a própria irritabilidade aumenta
desmedidamente face à apatia dos outros, e mais ainda diante do perigo em que ela
coloca a gente, quando de uma inspeção iminente.
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