A Caminho da Luz

sexta-feira, 3 de maio de 2013


A estação ferroviária de Auschwitz
 A primeira fase se caracteriza pelo que se poderia chamar de choque de recepção.
É preciso lembrar que o efeito de choque psicológico pode preceder à recepção
formal, dependendo das circunstâncias. Este foi o caso, por exemplo, naquele
transporte no qual eu mesmo cheguei a Auschwitz. Imagine-se a situação: o
transporte de 1500 pessoas está a caminho há alguns dias e noites. Em cada vagão
do trem se estiram 80 pessoas sobre a sua bagagem (seus últimos haveres). As
mochilas, bolsas, etc. empilhadas impedem quase toda visão pelas janelas,
deixando livre apenas um último vão na parte superior. Lá fora se divisa o primeiro
clarão da aurora. Todos achávamos que o transporte se dirigia para alguma fábrica
de armamento onde nos usariam para trabalhos forçados. Aparentemente o trem
pára em algum lugar no meio da linha; ninguém sabe ao certo se ainda estamos na
Silésia ou já na Polônia. O apito estridente da locomotiva causa arrepios, ecoando
como um grito de socorro ante o pressentimento daquela massa de gente
personificada pela máquina e por esta conduzida rumo a uma grande desgraça. O
trem começa a manobrar frente a uma grande estação. De repente, do amontoado
de gente esperando ansiosamente no vagão, surge um grito: "Olha a tabuleta:
Auschwitz!" Naquele momento não houve coração que não se abalasse. Todos
sabiam o que significava Auschwitz. Esse nome suscitava imagens confusas, mas
horripilantes de câmaras de gás, fornos crematórios e execuções em massa. O trem
avança lentamente, como que hesitando, como se quisesse dar aos poucos a má
notícia a sua desgraçada carga humana: "Auschwitz". Agora a visão já está melhor:
a aurora já permite ver a silhueta de um campo de concentração de colossais
dimensões, estendendo-se por quilômetros à esquerda e à direita dos trilhos.
Múltiplas cercas de arame farpado sem fim, torres de vigia, refletores e longas
colunas de figuras humanas aos farrapos, cinzentas no alvorecer, que avançam
exaustas pelas ruas desoladas do campo de concentração - sem que ninguém saiba
para onde. Aqui e ali se ouve um apito de comando – e ninguém sabe para quê. Em
alguns de nós, o terror fica estampado no rosto. Eu pensava estar vendo certo
número de cadafalsos dos quais pendiam pessoas enforcadas. O horror tomava
conta de mim, e isto era bom: segundo a segundo e passo a passo precisávamos
nos defrontar com o horror.
 Finalmente chegamos à estação de desembarque. Lá fora, nenhuma
movimentação, ainda. De repente, brados de comando daquele jeito peculiar -
estridente e rude - que de agora em diante ouviríamos sempre de novo em todos os
campos de concentração, cujo som é semelhante ao último berro de um homem
assassinado, com uma diferença: o som também é rouco e fanhoso, como se saísse
da garganta de um homem que tem que gritar constantemente assim porque está
sendo constantemente assassinado. . .
 Abrem-se violentamente as portas do vagão e ele é invadido por um pequeno
bando de prisioneiros trajando a roupa típica de reclusos, cabeça raspada, porém
muito bem alimentados. Falam todas as línguas européias possíveis e irradiam todos
uma jovialidade que neste momento e situação só pode mesmo ser grotesca: Como
a pessoa que está prestes a se afogar e se agarra a uma palha, assim o meu
arraigado otimismo, que desde então sempre me acomete justamente nas piores
situações, se agarra a esse fato: nem é tão má a aparência dessa gente, eles estão
visivelmente bem humorados e até rindo; quem diz que não chegarei também à

situação relativamente boa e feliz desses prisioneiros? A psiquiatria conhece o
quadro clínico da assim chamada ilusão de indulto: a pessoa condenada à morte,
precisamente na hora de sua execução, começa a acreditar que ainda receberá o
indulto justamente naquele último instante. Assim nós nos agarrávamos a
esperanças e acreditávamos até o último instante que não seria nem poderia ser tão
ruim. "Olha só o rosto rechonchudo e rosado desses prisioneiros!" Nem de longe
sonhávamos que se tratava de uma "elite", um grupo de prisioneiros escolhido para
receber os transportes dos milhares que, anos a fio, entravam diariamente pela
estação de Auschwitz, isto é, para tomar conta de sua bagagem juntamente com os
valores nela ocultos: utensílios difíceis de conseguir naquela época e jóias
contrabandeadas. Auschwitz naquele tempo era, sem dúvida,um centro singular na
Europa da última fase da guerra: a quantidade de ouro, prata, platina e brilhantes
que ali se encontrava, não só nos gigantescos depósitos, mas ainda em mãos do
pessoal da SS bem como do grupo de prisioneiros que nos recebia, certamente não
tinha paralelo. Certa vez, éramos 1100 prisioneiros num único barracão (destinado a
abrigar no máximo 200), esperando pelo transporte para campos menores,
sentados, acocorados ou de pé, no chão de terra, passando frio e com fome. Não
havia lugar para todos se sentarem, menos ainda para se deitarem. Num período de
quatro dias recebemos uma única vez uma lasca de pão (de 150 gramas). Naquela
ocasião presenciei, por exemplo, uma conversa em que o encarregado do barracão
negociava um prendedor de gravata, de platina, encravado de brilhantes, com um
prisioneiro daquele grupo de elite. O grosso desses objetos, entretanto, acabava
sendo trocado por aguardente que desse para divertir-se uma noite. Só sei de uma
coisa: esses prisioneiros de muitos anos precisavam de álcool. Quem vai censurar
uma pessoa que se entorpece em semelhante situação interior e exterior? Para não
falar dos prisioneiros postos a trabalhar nas câmaras de gás e no crematório, e que
sabiam perfeitamente que, passando o seu turno, seriam substituídos por outro
grupo, e que seguiriam eles mesmos um dia o caminho daquelas vítimas cujos
carrascos eram forçados a ser agora. Esse grupo recebia álcool praticamente à
vontade até do pessoal da SS.
A primeira seleção
 Eu e praticamente todos os integrantes do nosso transporte estávamos, portanto,
tomados por essa ilusão de indulto que acredita que tudo ainda pode sair bem. Pois
ainda não tínhamos condições de entender a razão daquilo que ali se desenrolava;
somente à noite é que iríamos entender. Mandaram-nos deixar toda a bagagem num
vagão, desembarcar e formar uma fila de homens e outra de mulheres, para então
desfilar perante um oficial superior da SS. Curiosamente, tive coragem de levar
comigo minha sacola, escondida da melhor maneira possível debaixo da capa. Vejo,
então, que a minha coluna se dirige, homem por homem, em direção ao oficial da
SS. Fico calculando: se ele perceber o peso da sacola que me puxa para o lado
haverá no mínimo uma bofetada que me fará voar na lama; isto eu já conhecia de
outra ocasião. . . Mais por instinto, quanto mais me aproximo daquele homem, deixo
meu corpo cada vez mais ereto, para que ele não perceba que estou carregando um
peso. Ei-lo agora à minha frente: alto, esbelto, elegante, num uniforme perfeito e
reluzente - uma pessoa bem trajada e cuidada, muito distante das nossas tristes
figuras de rosto sonolento e aparência decaída. Ele se sente muito à vontade. Apóia
o cotovelo direito na mão esquerda, e com a mão direita erguida executa um leve
aceno com o indicador, ora para a direita, ora para a esquerda. Nenhum de nós
tinha a menor idéia do significado sinistro daquele pequeno gesto com o dedo - ora

para a esquerda, ora para a direita, com freqüência muito maior para a direita.
Chega a minha vez. Alguém me sussurrou que para a direita (olhando da nossa
direção) ia-se para o trabalho; para a esquerda, para um campo de doentes e
incapacitados para o trabalho. Simplesmente deixo os fatos acontecerem. É a
primeira vez que faço isso. Mas tomarei esta atitude muitas vezes de agora em
diante. Minha sacola me puxa para a esquerda, mas me aprumo e fico ereto. O
homem da SS me olha criticamente. Parece hesitar, põe as duas mãos nos meus
ombros; faço um esforço para assumir uma postura do tipo militar. Fico firme e ereto:
lentamente, ele faz girar os meus ombros - e lá me vou para a direita.
 À noite ficamos sabendo o significado desse jogo com o dedo indicador: era a
primeira seleção! A primeira decisão sobre ser ou não ser. Para a imensa maioria do
nosso transporte, cerca de 90%, foi a sentença de morte. Ela foi levada a cabo em
poucas horas. Quem era mandado para a esquerda marchava diretamente da rampa
da estação para um dos prédios do crematório, onde - segundo me contaram
pessoas que ali trabalhavam - havia letreiros em diversas línguas européias que
caracterizavam o prédio como casa de banhos. Então todos os participantes do
transporte mandados para a esquerda recebiam um pedaço de sabão marca "Rif".
Sobre o que se desenrolava dali em diante posso calar-me, depois que relatos mais
autênticos já o tornaram conhecido. Nós, a minoria do transporte, ficamos sabendo
naquela mesma noite. Perguntei a companheiros que já estavam há mais tempo no
campo de concentração onde poderia ter ido parar meu colega e amigo P. - "Ele foi
mandado para o outro lado?" - "Sim", respondi. - "Então podes vê-lo ali", disseram.
"Onde?" Uma mão aponta para uma chaminé distante algumas centenas de metros,
da qual sobe assustadora e alta labareda pelo imenso e cinzento céu polonês, para
se extinguir em tenebrosa nuvem de fumaça. "O que há ali?" - "Ali o teu amigo está
voando para o céu", é a resposta grosseira. Continuo sem entender; mas logo
começo a compreender, assim que me "iniciam" no assunto.
 Tudo isto já contei por antecipação. Sob o ponto de vista psicológico, ainda
tínhamos um caminho muito longo a percorrer, desde o alvorecer na estação até
adormecermos pela primeira vez no campo de concentração. Nossa coluna foi
obrigada correr desde a estação, escoltada por um pelotão da guarda SS com o fuzil
engatilhado, passando pelos corredores de arame farpado carregado de alta tensão,
até o banho de desinfecção - para nós, eleitos na primeira seleção, ao menos um
banho real. Mais uma vez era alimentada a nossa ilusão de indulto: a SS até parecia
muito afável! Mas logo percebemos que eram agradáveis conosco enquanto viam
relógios em nossos pulsos, para, em tom muito cordial, nos persuadir a entregá-los,
já que de qualquer forma teríamos que entregar tudo que ainda tínhamos conosco.
Cada um de nós pensava consigo mesmo: perdido por perdido, se essa pessoa
relativamente amigável receber o relógio em caráter particular - por que não? Quem
sabe, um dia poderá prestar-me algum favor.
Desinfecção
 Ficamos esperando agora num galpão que forma a ante-sala da "desinfecção". A
SS vem com cobertores sobre os quais devem ser jogadas as posses pessoais,
todos os relógios e todas as jóias. Para a diversão dos prisioneiros "antigos" que
colaboram, ainda há entre nós alguns ingênuos que se arriscam a perguntar se não
se poderia ficar ao menos com uma aliança, um medalhão, um talismã ou uma
lembrança? Ninguém consegue acreditar que de fato tiram literalmente tudo da
gente. Procuro conquistar a confiança de um dos prisioneiros antigos. Aproximo-me
dele com cuidado, mostro um rolo de papel no bolso interno da minha capa e digo:

"Olha aqui! Tenho comigo um manuscrito científico a ser publicado - já sei o que vais
dizer, já sei: `escapar com vida, salvar a vida nua e crua é tudo, é o máximo que se
pode pedir do destino'. Mas eu não posso largar isto, eu tenho essa mania de
grandeza e quero mais. Quero ficar com este manuscrito, preservá-lo de alguma
forma - ele contém a obra da minha vida; compreendes? Ele começa a entender,
sim; começa a sorrir com todo o rosto: primeiro, compassivo; depois, como se fosse
divertido, fica de olhar zombeteiro e gozador até botar uma careta e gritar comigo,
liquidando a minha pergunta com uma única palavra, aquela palavra que desde
então sempre ouviria como a mais usada no vocabulário do prisioneiro do campo de
concentração: "Merda!" Aí percebo em que pé estão as coisas. Faço aquilo que
representa o ápice de toda essa primeira fase de reações psicológicas: dou por
encerrada toda minha vida até ali.
 De repente surge uma movimentação no grupo de companheiros do transporte,
parados, pálidos de medo, discutindo desorientados. Mais uma vez, os comandos
gritados com voz rouca; todos são tocados na corrida e aos empurrões para dentro
da ante-sala propriamente dita do banho. Estamos numa poça grande em cujo
centro um homem da SS aguarda até que nosso grupo esteja completo. Então
começa: "Dou dois minutos. Estou olhando para o meu relógio. Dentro de dois
minutos vocês têm que estar completamente nus. Atirem tudo no chão; não podem
levar nada, exceto sapatos, cintos ou suspensórios, um par de óculos e, no máximo,
o bragueiro de quem tem hérnia. Vou cronometrar dois minutos: já!" Com uma
pressa incrível o pessoal arranca a roupa do corpo; à medida que o tempo vai se
esgotando, forçam a roupa, correias e cintos e se despem cada vez mais nervosos e
desesperados. Súbito, os primeiros estalos. Sobre os corpos nus descem chicotes.
Somos levados para outra sala. Então nos raspam o pêlo de cima a baixo. Não
somente da cabeça: não fica um pêlo no corpo inteiro. Dali somos tocados para
dentro dos chuveiros. Entramos mais uma vez em fila. Um prisioneiro mal reconhece
o outro. Mas é com grande alívio e alegria que alguns constatam que dos chuveiros
realmente sai água. . .
O que resta: a existência nua e crua
 Enquanto ainda esperamos pelo chuveiro, experimentamos integralmente a nudez:
agora nada mais temos senão esse nosso corpo nu (sem os cabelos). Nada
possuímos a não ser, literalmente, nossa existência nua e crua. Que restou em
comum com nossa vida de antes? Para mim, por exemplo, ficaram os óculos e o
cinto; este, entretanto, teria que ser dado em troca de um pedaço de pão, mais
tarde. Para quem usasse bragueiro, ainda houve uma pequena surpresa especial à
noite: o encarregado do nosso barracão pronunciou uma saudação na qual deu a
"palavra de honra" de que quem tivesse costurado dólares ou metal precioso" em
seu bragueiro, seria enforcado por ele pessoalmente "neste barrote aqui" (apontando
com o dedo). Com muito orgulho, declarou ter este direito, como encarregado do
grupo e segundo o regulamento do campo.
 Os sapatos, com os quais em princípio podíamos ficar, foram um capítulo à parte.
Calçados de relativa qualidade acabavam sendo tirados da gente, recebendo-se em
troca um par que não servia. Deram-se mal aqueles que seguiram o conselho,
aparentemente bem intencionado, dos prisioneiros veteranos da guarda na antesala, de cortar o cano de suas elegantes botas e disfarçar esse "ato de sabotagem"
passando sabão no corte. A SS parecia estar esperando justamente por isso, e
mandou que todos se apresentassem para a vistoria dos sapatos. Quem entrasse
em suspeita de ter cortado o cano da sua bota era obrigado a entrar num pequeno

quarto contíguo. Pouco depois se ouviam os estalos do açoite e os berros dos
torturados. CONTINUA




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