Política e religião
A falta de sentimentos do prisioneiro de muitos anos no campo de concentração é precisamente um dos reflexos da desvalorização de tudo aquilo que não serve ao
interesse mais primitivo da preservação da vida. Tudo o mais, necessariamente,
parece um evidente luxo aos olhos do prisioneiro. Isto dá origem a um retraimento
ante todas as questões intelectuais e culturais, de todos os interesses mais
elevados. De um modo geral prevalece uma espécie de hibernação cultural. À parte
deste fenômeno mais ou menos geral, existem apenas duas áreas de interesse. Em
primeiro lugar a política (o que não é de surpreender) e, em segundo, a religião (o
que não deixa de ser notável). No campo de concentração todos discutem política
quase sem parar, mesmo que se trate apenas de ouvir sequiosamente os boatos
infiltrados e passá-los adiante - sobre a situação militar do momento, etc. Como,
porém, a maioria deles se contradizem, havendo uma rápida sucessão de boatos
incoerentes entre si, eles representam mais uma contribuição para a desgastante
"guerra de nervos" que se processa nas almas dos prisioneiros. Com freqüência
cada vez maior eram desfeitas as esperanças de um breve final da guerra,
despertadas pela maioria dos boatos otimistas. Alguns acabavam caindo em
desespero definitivo. Justamente os otimistas incuráveis entre nós eram os que mais
nos enervavam.
O interesse religioso dos prisioneiros, na medida em que surgia, era o mais ardente
que se possa imaginar. Não era sem um certo abalo que os prisioneiros recémchegados se surpreendiam pela vitalidade e profundidade do sentimento religioso. O
mais impressionante neste sentido devem ter sido as reações aos cultos
improvisados, no canto de algum barracão ou num vagão de gado escuro e fechado,
no qual éramos trazidos de volta após o trabalho em uma obra mais distante,
cansados, famintos e passando frio em nossos trapos molhados.
O tifo exantemático, que atacou, como se sabe, quase todos os reclusos no inverno
e na primavera de 1945, acarretou grande mortandade entre os doentes extenuados
que faziam trabalho forçado até não poder mais, pessimamente alojados,
geralmente sem receber qualquer assistência médica. Alguns dos sintomas desta
doença eram muitíssimo desagradáveis: uma repugnância quase que insuperável
por qualquer bocado de comida (o que representava uma ameaça adicional para a
vida), e ainda os terríveis delírios! Para escapar deles, fiz o mesmo que muitos
outros: procurei manter-me acordado a maior parte da noite. Por horas a fio eu fazia
discursos mentalmente. Por fim passei a reconstruir com rabiscos estenográficos,
em minúsculos pedaços de papel, aquele manuscrito que tive que jogar fora antes
da desinfecção em Auschwitz. O caso mais angustiante de delírio, entretanto, foi-me
relatado a respeito de um companheiro que, sabendo-se próximo da morte, quis orar
mas não conseguiu articular palavras, transtornado pela febre. . .
Uma sessão espírita
Vez por outra podia surgir também um debate científico no campo de concentração.
Certa vez presenciei algo que, embora me fosse de certa forma afim do ponto de
vista profissional, eu jamais conhecera na vida normal: uma sessão espírita. O
médico-chefe do campo, que teve o palpite de que eu era um psicólogo profissional,
convidou-me para uma reunião altamente secreta no pequeno compartimento em
que morava, na enfermaria. Reuniu-se ali um pequeno círculo no qual também se
achava (em flagrante infração do código) o suboficial de saúde de nosso campo. Um
colega estrangeiro começou a conjurar os espíritos numa espécie de reza. O
secretário da enfermaria estava sentado frente a uma folha de papel em branco,
devendo segurar um lápis sobre a mesma, sem qualquer intenção consciente de
escrever. No curso de dez minutos - ao fim dos quais a sessão foi interrompida com
a alegação de terem falhado os espíritos ou o médium - seu lápis foi traçando muito
lentamente algumas linhas sobre o papel, as quais podiam ser claramente
decifradas como VAE VICTIS. Afiançou-se que o secretário jamais aprendera latim
nem tampouco teria ouvido as palavras VAE VICTIS (ai dos vencidos!). Se alguém
me perguntasse, eu diria que, sem saber, ele já devia ter ouvido estas palavras
alguma vez em sua vida, assim como também a respectiva tradução; e a nossa
situação de então, poucos meses antes da nossa libertação, ou seja, do final da
guerra, ensejava ao "espírito" (espírito do seu subconsciente) pensar justamente
nessas palavras...
A fuga para dentro de si
Apesar de todo o primitivismo que toma conta da pessoa no campo de
concentração, não só exteriormente, mas em sua vida interior, percebem-se, embora
esporadicamente, os indícios de uma expressiva tendência para a vivência do
próprio íntimo. Pessoas sensíveis, originalmente habituadas a uma vida intelectual e
culturalmente ativa, dependendo das circunstâncias e a despeito de sua delicada
sensibilidade emocional, experimentarão a difícil situação externa no campo de
concentração de forma, sem dúvida, dolorosa; esta, não obstante, ter para elas
efeitos menos destrutivos em sua existência espiritual. Pois justamente para essas
pessoas permanece aberta a possibilidade de se retirar daquele ambiente terrível
para se refugiar num domínio de liberdade espiritual e riqueza interior. Esta é a única
explicação para o paradoxo de às vezes, justamente aquelas pessoas de
constituição mais delicada conseguirem suportar melhor a vida num campo de
concentração do que as pessoas de natureza mais robusta.
Para tornar este tipo de experiência mais ou menos compreensível, vejo-me outra
vez obrigado a reportar-me a coisas pessoais. Recordo-me de quando saíamos do
campo, de manhã cedo, marchando rumo à "obra". Ouve-se uma voz de comando:
"Grupo de trabalho Weingut, marchar!!! Esquerda, 2, 3, 4, esquerda, 2, 3, 4! Cabo de
fila, lateral! Esquerda - esquerda - e - esquerda - boinas fora!" Estes os brados que a
memória faz ressoar em meus ouvidos. Ao grito de "Boinas fora!" passamos pelo
portão do campo. Os refletores estão focados sobre nós. Quem não marchar ereto e
bem alinhado na fileira de cinco homens, pode contar com um pontapé – e haverá
algo pior para quem, pensando em se resguardar do frio, ousar cobrir de novo as
orelhas com a boina, antes que a voz de comando o autorize. Prosseguimos na
escuridão, aos tropeços, sobre as pedras e longas poças d'água na zona de acesso
ao campo. Os guardas de escolta ficam berrando e nos espicaçam com a coronha
de seus fuzis. Quem tem os pés muito feridos, dê o braço ao seu companheiro ao
lado, cujos pés doem um pouco menos. Mal e mal trocamos alguma palavra; o vento
gelado antes de nascer o sol não o permite. Com a boca escondida atrás da gola da capa o companheiro que marcha ao meu lado murmura de repente: "Se nossas
esposas nos vissem agora...! Tomara que estejam passando melhor no campo de
concentração em que estão. Espero que não tenham idéia do que estamos
passando." E eis que aparece à minha frente a imagem de minha mulher.
Quando nada mais resta
Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou
resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e
arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra mais, mas
sabemos neste momento que cada um ainda só pensa em sua mulher. Vez por outra
olho para o céu aonde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela região no
horizonte em que assoma a alvorada por detrás de um lúgubre grupo de nuvens.
Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma
fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal.
Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar
como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e - tanto faz se é real ou não a sua
presença - seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está
nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a
verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da
sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o
bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana.
Compreendo agora as coisas últimas e extremas que podem ser expressas em
pensamento, poesia - em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a
compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode
tornar-se bem-aventurada - ainda que somente por alguns momentos - entregandose interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa
imaginar, numa situação em que a pessoa não pode realizar-se através de alguma
conquista, numa situação em que sua conquista pode consistir unicamente num
sofrimento reto, num sofrimento de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode
realizar-se na contemplação amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de
si da pessoa amada. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: Os anjos
são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita. . .
A minha frente um companheiro cai por terra, e os que vão atrás dele também
caem. Num instante o guarda está lá e usa seu chicote sobre eles. Por alguns
segundos se interrompe minha vida contemplativa. Mas num abrir e fechar de olhos
eleva-se novamente minha alma, salva-se mais uma vez do aquém, da existência
prisioneira, para um além que retoma mais uma vez o diálogo com o ente querido:
Eu pergunto - ela responde; ela pergunta - eu respondo.
"Alto!" Chegamos ao local da obra. "Cada qual busque sua ferramenta! Cada um
pegue uma picareta e uma pá!" E todos se precipitam para dentro do galpão
completamente às escuras para arrebanhar uma pá jeitosa ou uma picareta mais
firme. "Como é, não vão se apressar, seus cachorros imundos?" Dali a pouco
estamos no valo, cada um em seu lugar da véspera. A picareta estilhaça o chão
congelado, soltando até fagulhas. Nem mesmo os cérebros ainda degelaram, os
companheiros continuam calados. Meu espírito ainda se apega à imagem da pessoa
amada. Continuo falando com ela, e ela continua falando comigo. De repente me
dou conta: nem sei se minha esposa ainda vive! Naquele momento fico sabendo que
o amor pouco tem a ver com a existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal
ponto à essência espiritual da pessoa amada, a seu "ser assim" (nas palavras dos
filósofos) que a sua "presença" e seu "estar aqui comigo" podem ser reais sem sua existência física em si e independentemente de seu estar com vida. Eu não sabia,
nem poderia ou precisaria saber, se a pessoa amada estava viva. Durante todo o
período do campo de concentração não se podia escrever nem receber cartas. Mas
isto naquele momento de certa forma não tinha importância. As circunstâncias
externas não conseguiam mais interferir no meu amor, na minha lembrança e na
contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquela ocasião
tivesse sabido: minha esposa está morta - acho que este conhecimento não teria
perturbado meu enlevo interior naquela contemplação amorosa. O diálogo intelectual
teria sido intenso e gratificante em igual escala. Naquele momento me apercebo da
verdade: "põe-me como selo sobre o teu coração... porque o amor é forte como a
morte." (Cântico dos Cânticos 8.6).
Meditação no valo
A vida no campo de concentração pode ser transferida para o íntimo naquela
pessoa que está disposta para tal. O efeito desta intimização está na fuga do vazio e
da desolação, da seca espiritual da existência atual, para o refúgio no passado.
Absorta em si mesma, a fantasia da pessoa sempre volta a reviver experiências
passadas. Mas o que ocupa o pensamento não são as grandes experiências, e, sim,
muitas vezes, um fato corriqueiro, as coisas mais insignificantes de sua vida anterior.
Na lembrança nostálgica, elas se apresentam sublimes ao prisioneiro. Distanciada
da vida real, voltada para o passado, a vida interior recebe um cunho peculiar. O
mundo e a vida lá fora estão muito distantes. O espírito tem saudade deles: a gente
anda de bonde, chega em casa, abre a porta da frente, o telefone toca; a gente
caminha para atender e acende a luz do quarto - são detalhes aparentemente
irrisórios como estes que o prisioneiro gosta de lembrar. A doce recordação destes
pormenores o comove até as lágrimas!
Esta tendência para a intimização, ao manifestar-se em certos prisioneiros,
possibilita a mais viva percepção da arte ou da natureza. A intensidade desta
experiência faz esquecer por completo o mundo que o cerca e todo o horror da
situação. Certa vez, no transporte de prisioneiros de Auschwitz para o campo de
concentração na Baviera, estávamos outra vez olhando por entre as grades da
abertura de um vagão. Quem tivesse visto nossos semblantes arrebatados, a
contemplar as montanhas de Salzburgo, cujos picos resplandeciam das cores rubras
do sol poente, jamais acreditaria tratar-se de rostos de pessoas que nada mais
esperavam da vida. Mesmo assim (ou, quem sabe, justamente por isso?) eles
estavam enlevados ante a beleza natural que não viam há anos. E mesmo dentro do
campo, alguém chama a atenção do companheiro de trabalho para algum quadro
deslumbrante que está ao alcance dos olhos, como certo dia em plena Floresta
Bávara (onde nos puseram a construir gigantescas fábricas subterrâneas de
armamento). Entre aqueles pinheiros altíssimos, o sol poente resplandece como na
famosa aquarela de Dérer. Outra vez, à noitinha, estávamos estendidos no chão de
terra do barracão, mortos de cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou um
companheiro correndo e mandou-nos depressa para a área de chamada da turma,
apesar de toda a nossa fadiga e do frio lá fora, só para não perdermos uma visão
magnífica do pôr do sol. Vimos, então, o ocaso incandescente e tenebroso, com
todo o horizonte tomado de nuvens multiformes e em constante transfiguração, de
fantásticos perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até o escarlate
sangue, contrastando pouco mais abaixo com os desolados barracos cinzentos do
campo de concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos
prisioneiros, em cujas poças ainda se refletia o céu incandescente. E alguém exclamou após alguns minutos de silêncio arrebatado: "O mundo poderia ser tão
belo!"
Monólogo na madrugada
Estás no valo trabalhando. O crepúsculo que te envolve é cor-de-cinza, o céu
acima é cinzento, cinzenta a neve no pálido lusco-fusco, os trapos dos teus
companheiros são cinzentos, e também os semblantes deles são cor-de-cinza.
Retomas outra vez o diálogo com o ente querido. Pela milésima vez lanças rumo ao
sol teu lamento e tua interrogação. Buscas ardentemente uma resposta, queres
saber o sentido do teu sofrimento e de teu sacrifício - o sentido de tua morte lenta.
Numa revolta última contra o desespero da morte à tua frente, sentes teu espírito
irromper por entre o cinzento que te envolve, e nesta revolta derradeira sentes que
teu espírito se alça acima deste mundo desolado e sem sentido, e tuas indagações
por um sentido último recebem, por fim, de algum lugar, um vitorioso e regozijante
"sim". Nesse mesmo instante acende-se ao longe uma luz, na janela de uma
distante moradia camponesa, postada feito bastidor à frente do horizonte, em meio à
cinzenta e desolada madrugada bávara “et lux in tenebris lucet”, e a luz resplandece
nas trevas. Agora estiveste horas a fio picando o chão congelado, outra vez passou
a sentinela e debochou um pouco de ti, e de novo recomeças o diálogo com teu ente
querido. Tens cada vez mais o sentimento de que ela está presente. Sentes que ela
está ali. Crê poder tocá-la, parece precisares apenas estender a mão para tomar sua
mão. E com grande intensidade te invade o sentimento: Ela, está aqui! Eis cá aquilo:
no mesmo instante - o que é aquilo? - sem que tenhas notado, acaba de pousar um
passarinho bem à tua frente, sobre o torrão que recém cavaste, parte fitar atento e
sereno. . .
Arte no campo de concentração
Falamos acima de arte. Arte no campo de concentração será possível isso? Claro,
depende do que se chama de arte. Vale dizer que vez por outra havia inclusive
teatro improvisado. Desocupava-se provisoriamente um barracão, improvisavam-se
alguns bancos de tábuas e elaborava-se um "programa". E à noite vêm aqueles que
passavam relativamente bem no campo, como por exemplo os Capos ou os que
trabalhavam no depósito e não precisavam marchar para o trabalho externo; eles
vêm para rir ou chorar um pouco, em todo o caso para esquecer. Apresentam-se
algumas canções e recitam-se poemas, contam-se ou apresentam-se cenas
cômicas, ou mesmo sátiras alusivas à vida no campo de concentração, tudo para
ajudar a esquecer. E realmente ajuda! Ajuda a tal ponto que alguns prisioneiros
comuns, não privilegiados, vêm para esse teatro mesmo exaustos da labuta do dia,
e mesmo perdendo por isso a distribuição da sopa.
Quem fosse privilegiado com uma voz realmente boa, era alvo de inveja, e não
pouca. Durante a meia hora de intervalo do meio-dia, nos primeiros tempos de nosso
internamento no campo de concentração, era distribuída uma sopa no próprio local
da obra (a sopa era providenciada pela firma construtora, que não tinha interesse
em investir muito na mesma). Durante esse intervalo podíamos reunir-nos na sala de
máquinas ainda em construção; na entrada cada um recebia uma concha de sopa
rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um companheiro subia num tonel e
cantava árias italianas. Enquanto para nós isto representava um deleite musical, ele
tinha garantida uma ração dupla de sopa, "do fundo", ou seja, até com ervilhas.
No campo de concentração havia recompensa não somente para a arte, mas
também para o aplauso. Embora acabasse não sendo necessário, eu ao menos pude contar com a proteção do mais temido chefe em todo o campo, por todos
chamado de "chefe assassino", certamente por mais de uma razão. Por que?
Certa noite tive a incrível "honra" de ser convidado para aquele mesmo alojamento
em que tivera lugar a sessão espírita acima descrita. Mais uma vez houve primeiro
uma conversa informal numa reunião íntima do médico-chefe (prisioneiro ele
mesmo), e mais uma vez a presença totalmente ilegal do suboficial de saúde.
Entrando, por acaso, o Capo assassino, pediram-lhe que apresentasse um de seus
poemas, cuja fama já se espalhara por todo o campo. Não se fez de rogado e trouxe
uma espécie de diário, passando a recitar alguns trechos de sua arte poética. Ao
ouvir um de seus poemas de amor, tive que morder os lábios para não cair em
gargalhadas, o que sem dúvida me salvou a vida. Além disso, não poupei aplausos,
o que decerto me salvaria a vida caso eu fizesse parte do seu comando de trabalho
– este fora o caso uma única vez e por um só dia, o que para mim já foi mais do que
suficiente. . . Em todo caso era conveniente o Capo assassino ter boa lembrança da
gente. Portanto bati palmas o que, pude, mesmo que um dos aspectos menos
ridículos do poema de amor do chefe assassino consistisse em que "amor"
constantemente rimava com "dor", e "coração", com "paixão".
De um modo geral, toda a assim chamada atividade artística no campo de
concentração naturalmente apresentava muitos aspectos grotescos. Eu diria, até,
que a experiência propriamente dita daquilo que, de certa forma, está ligado à arte,
provinha antes do tremendo contraste entre o que era apresentado e o pano de
fundo da desolada vida no campo. Jamais esquecerei quando acordei do profundo
sono de esgotamento na segunda noite em Auschwitz, despertado por - música. O
chefe do bloco estava comemorando alguma coisa em seu compartimento bem ao
lado da entrada do barracão. Vozes embriagadas berravam canções populares.
Repentinamente silêncio, e um violino chorava um tango de tristeza infinita,
raramente tocado e ainda não gasto de tanto ouvir. . . Chorava o violino - dentro de
mim algo chorava junto. É que naquele dia alguém fazia vinte e quatro anos, e este
alguém estava deitado em qualquer barracão do campo de Auschwitz, distante
apenas algumas centenas ou milhares de metros dali - e mesmo assim fora de
alcance. Este alguém era minha esposa.
Se a pessoa que está de fora já pode surpreender-se com o fato de o campo de
concentração permitir algo como a experiência da arte ou da natureza, mais ainda se
espantará se eu disser que ali também existia humor. Claro, somente um princípio
de humor, e mesmo então apenas por segundos ou minutos. Também o humor
constitui uma arma da alma na luta por sua auto-preservação. Afinal é sabido que
dificilmente haverá algo na existência humana tão apto como o humor para criar
distância e permitir que a pessoa passe por cima da situação, mesmo que somente
por alguns segundos.
Um amigo e colega com quem trabalhei lado a lado, por semanas a fio, no local da
construção, foi por mim adestrado na prática do humor: propus-lhe o compromisso
mútuo de inventarmos ao menos uma piada por dia, mais especialmente uma
ocorrência que poderia ter lugar após a nossa libertação e volta para casa. Ele era
cirurgião, tendo sido assistente de uma seção de cirurgia de um hospital. Assim, por
exemplo, tentei fazê-lo sorrir, certa vez, descrevendo a dificuldade que ele teria,
após a volta para casa e para o antigo campo de atividades, em perder os hábitos
adquiridos no campo de concentração. Diga-se de antemão que, quando o chefe da
obra se aproximava do local de nosso trabalho, para inspeção, o supervisor
procurava acelerar o ritmo com o habitual "mexam-se, mexam-se!" O que contei a
meu companheiro foi o seguinte: "Quando você estiver novamente na sala de operação realizando uma demorada cirurgia de estômago, o atendente da sala de
operação vai entrar correndo e dizer `mexam-se, mexam-se', para avisar que o
chefe está chegando." - Muitas vezes os próprios companheiros inventavam esse
tipo de situação engraçada no futuro. Assim prediziam, por exemplo, que quando
fossem convidados para um jantar em sociedade, poderia suceder que, distraídos,
quando fosse servida a sopa, pediriam à senhora da casa - assim como pediam ao
Capo no intervalo do meio-dia - que ela lhes desse sopa "bem do fundo", para
pescar algumas ervilhas ou meia batata.
A vontade de humor - a tentativa de enxergar as coisas numa perspectiva
engraçada - constitui um truque útil para a arte de viver. A possibilidade de optar por
viver a vida como uma arte, mesmo em pleno campo de concentração, é dada pelo
fato de a vida ali ser muito rica em contrastes. E efeitos contrastantes, por sua vez,
pressupõem certa relatividade de todo sofrimento. Em sentido figurado, se poderia
dizer que o sofrimento do ser humano é como algo em estado gasoso. Assim como
determinada quantidade de gás preenche um espaço oco sempre de modo uniforme
e integral, não importando as dimensões desse espaço, o sofrimento ocupa toda a
alma da pessoa humana, o consciente humano, seja grande ou pequeno este
sofrimento. Daí resulta que o "tamanho" do sofrimento humano é algo bem relativo;
resulta, ainda, que algo quase insignificante pode proporcionar a maior das alegrias,
como foi, por exemplo, na ocasião em que viajávamos de Auschwitz para um dos
campos filiais em Dachau, na Baviera. Temíamos que o transporte fosse para
Mauthausen. Nossa ansiedade crescia à medida em que o trem se aproximava
daquela ponte sobre o Danúbio pela qual, segundo diziam companheiros com anos
de experiência em campos de concentração, ele teria que passar assim que se
desviasse da linha principal, caso se dirigisse a Mauthausen. Quem ainda não
passou por algo semelhante só acreditaria se pudesse ver os prisioneiros no vagão
dançar de alegria, ao perceberem que o transporte se dirigia "apenas" para Dachau.
E como foi depois, ao chegarmos ao campo sucursal em Dachau? Tínhamos
viajado dois dias e três noites, e no chão do apertado vagão-cárcere não havia lugar
para todos se assentarem. A maioria teve que passar de pé a longa viagem,
enquanto alguns poucos podiam acocorar-se por turnos sobre um pouco de palha,
que estava molhada de urina. Em outras palavras: estávamos completamente
esgotados ao chegar. A primeira informação importante, dada por prisioneiros
internados há mais tempo lá, dizia que naquele campo relativamente pequeno (o
número de prisioneiros nunca passou de dois mil e quinhentos) não havia "forno",
isto é, ali não havia nenhum crematório nem, por conseguinte, câmara de gás, e isto
significava que, no caso de alguém ficar "muçulmano", não poderia ser levado
diretamente para o gás, mas apenas quando se organizasse o transporte de doentes
para Auschwitz. Assim o perigo de morte vindo dessa parte ao menos não era tão
direto. A agradável surpresa por nos ter sido dado aquilo que nos desejara nosso
chefe de bloco – ele nos recomendara sermos mandados o quanto antes para um
campo que não tivesse "lareira" como em Auschwitz – esta agradável surpresa nos
encheu de alegria. Ficamos tão bem humorados a ponto de nos entregar a gracejos
e dar risadas, a despeito do que nos sobreveio nas horas seguintes. Acontece que,
nas repetidas contagens dos prisioneiros recém-chegados com o nosso transporte,
faltava um. Tivemos que ficar de pé na área de ordem-unida, expostos à chuva e ao
vento frio, até que fosse achado o homem. Foi encontrado num barracão, onde caíra
em sono profundo, vencido pelo cansaço. Assim, a demorada formação para
contagem acabou virando uma ordem-unida de castigo. Durante a noite inteira e
mais uma parte da manhã seguinte tivemos que ficar de pé na área de ordem-unida, encharcados e enregelados, e isto ainda depois de longa e penosa viagem! Mesmo
assim, nosso estado de espírito era a maior das alegrias! Pois naquele campo não
havia "lareira", e Auschwitz ficava longe. . .
Invejando presidiários
Ou como era quando víamos um grupo de presidiários passando pelo local de
trabalho? Ali se revelava flagrantemente a relatividade de qualquer situação! Ocorre
que invejávamos esses presidiários por sua vida relativamente regrada,
relativamente assegurada, relativamente asseada! Era com melancolia que
pensávamos: "Esses aí podem tomar banho regularmente, eles sem dúvida têm sua
escova de dentes, sua escova de roupa, sua tarimba para dormir (cada um a sua),
sua correspondência mensal." Eles sabiam onde estavam seus familiares, sim, que
estavam com vida. Nós, entretanto, fazia muito que não gozávamos mais desses
privilégios.
Ou como invejávamos até aqueles entre nós que tinham a grande chance de ir
trabalhar numa fábrica em ambiente fechado, protegidos do frio e do tempo! Com
quanta ansiedade cada um de nós esperava essa chance de salvar a vida! Mas a
escala de felicidade relativa ainda vai além. Mesmo entre nós, que tínhamos que
trabalhar em grupos de trabalho externo, podia ser que aquele destacado para um
comando pior invejasse outro justamente por este não ter a infelicidade de ficar doze
horas por dia descarregando as vagonetas de uma linha rural, numa encosta
íngreme, com o barro até os joelhos. Neste comando ocorria a maior parte dos
acidentes, que eram diários e muitas vezes fatais. Outros comandos tinham
capatazes tão rigorosos e inclinados à violência contra os prisioneiros que nos
considerávamos relativamente felizes pelo fato de não pertencer a eles. Certa vez,
por uma infeliz coincidência, caí num desses comandos de trabalho. Durante duas
horas o supervisor me vigiou constantemente, até que um alarme aéreo forçou a
interrupção do serviço. Depois se tornou necessária uma nova distribuição do
pessoal em grupos de trabalho. Não fosse isso, eu acabaria sendo transportado de
volta para o campo de concentração sobre o trenó em que eram levados os
companheiros já mortos ou prestes a morrer de esgotamento. Ouvir a sirene de
alarme numa situação destas é uma redenção que nem um pugilista, que já
experimentou o que representa a batida do gongo, no final de um round, a salvá-lo
do noucate no último instante, pode imaginar.
Felicidade é ser poupado
Nós éramos gratos ao destino quando ele nos poupava de sustos, os mínimos que
fossem. Já ficávamos contentes quando à noite podíamos catar os piolhos do corpo,
antes de nos deitar. Em si, não era uma operação agradável, porque era preciso
despir-nos no barracão quase nunca aquecido, em cujo interior, muitas vezes,
pendiam do teto estalactites de gelo. Mas nos dávamos por satisfeitos quando, em
tal hora, não havia um alarme aéreo que causasse um blecaute e nos impedisse de
completar a operação cata-piolho, o que significava metade da noite sem conseguir
dormir. É claro que todas essas miseráveis "alegrias" do campo de concentração
representavam por excelência uma felicidade no sentido negativo de Schopenhauer,
ou seja, uma isenção de sofrimento, e mesmo esta, conforme mostramos acima,
apenas em sentido muito relativo. Alegrias positivas, mesmo pequenas, tínhamos só
raras vezes. Lembro-me muito bem que elaboramos certa vez uma espécie de
balanço do prazer, cujo saldo resultou em que, no curso de muitas e muitas
semanas, tive apenas dois momentos de real contentamento. Foi quando, ao voltar do serviço para o campo, depois de longa espera em frente ao barracão de cozinha,
fui destacado para aquela fila que dava no cozinheiro F., também prisioneiro. Tinha
ele à sua frente um tacho enorme, de onde tirava a sopa para despejá-la nas
vasilhas que lhe estendiam os companheiros de trabalho enfileirados. Era ele o
único cozinheiro que não olhava para a pessoa que lhe estendia o prato; era o único
que distribuía a sopa por igual, literalmente "sem olhar a quem", sem dar preferência
a seus amigos pessoais ou a seus conterrâneos, pescando para eles as batatas no
fundo do tacho, para dar aos outros o caldo "de cima". . . - Mas não faz sentido
criticar aqueles prisioneiros para quem a sua panelinha era tudo. Quem vai atirar a
primeira pedra em pessoas que dão preferência a seus amigos quando, mais cedo
ou mais tarde, se trata de uma questão de vida ou morte? Num caso destes ninguém
deveria levantar a pedra antes de se perguntar com sinceridade, à toda prova, se
com certeza teria agido de outra forma, estando na mesma situação.
Muito tempo depois de ser libertado do campo de concentração e recomeçar uma
vida normal, alguém me chama a atenção para uma fotografia reproduzida numa
revista, mostrando prisioneiros num campo de concentração amontoados em seus
beliches coletivos, a fitar de olhar vazio e observador. "Você não acha terrível isto,
esses olhares horripilantes, e tudo o mais...?" - "Como assim?" pergunto eu - e de
fato não consigo entender. Pois naquele instante surge um quadro dentro de mim.
Cinco horas da manhã. Lá fora, noite escura ainda. Estou deitado sobre as duras
tábuas de um galpão de chão batido, no qual cerca de setenta companheiros estão
"em repouso", isto é, deram-nos baixa e não precisamos deixar o campo de
concentração para marchar rumo ao trabalho. Não precisamos nem entrar em
ordem-unida. Podemos ficar o dia inteiro deitados ou encostados em nosso apertado
cantinho no barracão, devaneando, esperando pela distribuição, uma vez por dia, da
ração de pão naturalmente reduzida para os doentes "em repouso", e pela
distribuição, uma vez por dia, da ração da sopa ainda mais aguada e ainda mais
reduzida para essa categoria. Mas estamos muito satisfeitos, sim, até felizes, apesar
de tudo! Aconchegamos os nossos corpos para evitar toda perda desnecessária de
calor e estamos apáticos e lerdos demais para mexer um dedo sequer enquanto não
for imprescindível, quando ouvimos lá de fora estridentes apitos e brados de
comando, da área de formação onde acaba de chegar a turma de trabalho da noite.
Abre-se a porta com ímpeto, a nevasca invade o barracão. Uma figura coberta de
neve, um companheiro exausto entra cambaleando para descansar alguns minutos
sobre uma tábua. Porém o chefe do barracão o bota para fora, porque durante a
formatura de chamada é estritamente proibido permitir a entrada no galpão de
repouso a quem quer que seja que não tenha ali o seu lugar. Como tenho pena dele!
Quão feliz estou, neste momento, por não estar na pele dele, mas "em repouso",
podendo entregar-me a devaneios no meu galpão. Afinal era como salvar a vida,
receber dois dias de repouso na enfermaria no setor de doentes e, além disso, ainda
ganhar de quebra mais dois dias.
Ir para o setor de tifo exantemático?
Mas daquela vez ainda tive muito mais sorte. Ao passar o quarto dia "em repouso",
constava que eu seria destacado para o turno da noite - o que para mim significava
morte certa. Inesperadamente o médico-chefe precipitou-se para dentro do barracão
e instou comigo para que me apresentasse voluntariamente para o serviço médico
em outro setor, o de tifo exantemático. Contrariando os insistentes conselhos dos
meus amigos e à diferença do comportamento calculista de quase todos os outros
colegas de profissão não engajados, imediatamente resolvi apresentar-me. Eu sabia que num comando de trabalho eu me acabaria dentro de pouquíssimo tempo. Já
que iria morrer, então eu queria que minha morte tivesse sentido. Alguma espécie de
ajuda a meus companheiros enfermos, na qualidade de médico, sem dúvida me
parecia ter mais sentido que bater as botas como trabalhador braçal ineficiente que
eu era então. Isto foi para mim um cálculo muito simples e de modo algum um
sacrifício heróico. Ocorre, porém, que o suboficial de saúde havia determinado em
segredo que os dois médicos que se apresentaram voluntariamente para o campo
de febre exantemática poderiam ficar em repouso até serem levados para lá. Com
efeito, estávamos tão acabados que, não tomasse ele essa medida, o que teria à
disposição não seriam alguns médicos, e sim alguns cadáveres.
Tudo isso me veio à memória quando me mostraram aquela foto de um campo de
concentração. E passei a contar tudo isso até me entenderem, também disse que
nem era tão horrível o que se apresentava naquela foto, e sim que eu poderia
imaginar até muito bem que aquela gente não estava se sentindo tão infeliz.
Falamos no início da grande desvalorização que elimina com poucas exceções -
tudo aquilo que nada tem a ver diretamente com a preservação da vida da própria
pessoa bem como daquelas que em seu íntimo lhe são próximas. A própria pessoa,
entretanto, não escapa dessa desvalorização. Até ela é incluída no turbilhão
espiritual que parece arrancar todos os valores para um abismo de ambigüidade.
Sob a sugestão de um ambiente que não dá o menor valor à vida humana ou à
dignidade das pessoas, mas que faz de pessoas objetos destituídos de vontade,
peças de uma política de exterminação que é adiada apenas para a exploração dos
últimos restos de capacidade física de trabalho - exposto a essa sugestão
generalizada, o próprio eu só pode mesmo acabar desvalorizado. A pessoa que
estiver no campo de concentração e não resistir a essa sugestão com um impulso
último do sentimento de valor próprio, acaba perdendo a sensação de ser ainda um
sujeito, ou sequer um ente espiritual dotado de liberdade interior e valor pessoal. Ela
experimenta a si mesma somente como partícula de uma massa enorme, e sua
existência se reduz ao nível de existência num rebanho. Sem poder pensar nem
querer direito, as pessoas ali ora são tocadas para cá, ora para lá, ora são
ajustadas, ora dispersas, como rebanho de ovelhas. À tua direita e à tua esquerda, à
frente e atrás espreita pequena, porém armada, requintada e sádica matilha que não
pára de te tocar para frente ou para trás, aos berros, pontapés e coronhadas.
Sentíamo-nos feito ovelhas num rebanho, que somente sabem, pensam e querem
uma coisa: escapar aos ataques dos cães e, num momento de paz, poder comer um
pouco. Como ovelhas que procuram temerosamente enfiar-se para o meio do
rebanho amontoado, cada um de nós tentava postar-se no centro da fileira de cinco
homens e, se possível, também no meio de todo o grupo, para assim ter as
melhores chances de escapar aos golpes dos guardas que marchavam ao lado da
coluna, à sua frente e na retaguarda. Essa posição no meio apresentava ainda uma
vantagem nada desprezível, ou seja, a da proteção contra o vento.
Quando a pessoa que está no campo de concentração procura submergir
completamente na massa, ela não está sendo apenas condicionada pela sugestão,
mas trata-se ainda de uma tentativa de auto-preservação em vários sentidos.
"Submergir" em fileiras de cinco é algo que o prisioneiro cedo já faz mecanicamente;
conscientemente, no entanto, ele procura submergir "na massa" para fazer jus a um
dos supremos mandamentos da auto-preservação no campo: não chamar a atenção
da SS sobre si nem no mais insignificante de
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