A história de um Espírito completista
Na simplicidade de um lar, sob a divina incumbência da maternidade, Espíritos endividados do ontem se elevam pela via do amor
e da resignação
É
interessante observarmos a reação de alunos diante do sistema de
avaliação escolar. Poucos conseguem manter o equilíbrio emocional
necessário obtendo êxito completo, e muitos, mesmo sabendo o conteúdo de
forma suficiente, se vêm derrotados por causa das emoções em desalinho.
Assim estamos nós, Espíritos eternos no palco deste mundo de provas e
expiações, onde o próprio nome já define a escala em que se encontra o
nosso planeta, e isto, por causa da nossa própria evolução moral ainda
em atraso.
Como alunos assustados diante de uma avaliação,
tantas vezes falhamos e somos encaminhados à inevitável repetência,
porém há os que nos deixam um exemplo sublime desta importante aprovação
e o fazem com louvor. Pensando nisto, lembrei-me de uma pessoa muito
especial com a qual tive o prazer de conviver, e que me possibilitou
conhecer de perto as histórias de sua vida, que alimentaram minha
infância e hoje me levam a refletir sobre o nosso papel como Espíritos
em evolução. Uma mulher ímpar e detentora de alta envergadura moral.
Casou-se
ainda na adolescência – fato comum na época de nossos avós – recebendo
por marido um homem extremamente rude e dado aos prazeres da vida. Além
de desempenhar a função de esposa e mãe, passava os dias sentada numa
máquina de costura, através da qual conseguiu custear a educação de
todos os filhos em colégio pago, pois achava que, assim, acabariam tendo
uma vida financeiramente mais estruturada que a sua.
Foi mãe de
dezesseis crianças, mas nem todas atingiram a idade adulta, pois na
época a mortalidade infantil chegava a níveis absurdos por causa de
simples males que hoje estão plenamente controlados. Logo no início do
casamento foi morar numa fazenda e, durante as noites, ela que era pouco
mais que uma menina, sofria muito com as ausências do marido. Certa
feita confessou-me que seu maior medo era a possibilidade de ver algum
fantasma entrando na casa porta adentro, e por isso preferia ficar
sentada do lado de fora, que na verdade não passava de um rancho no meio
do pasto. Com o lampião do lado e o primeiro filho no colo, dizia que
era possível sentir as baforadas dos búfalos que se aproximavam por
causa da luz.
Era uma mãe dedicada e amorosa, detentora de uma
personalidade permeada pela mansuetude, distribuindo carinho e atenção a
todos, inclusive para mim. Um dia me contou que além dos filhos
biológicos que Deus lhe dera, havia acolhido a filha de um sobrinho,
pois diante da eminência de uma doença fatal, o rapaz, que era pai
solteiro, lhe pedira para criar a filha, justificando que ele não
conhecia ninguém melhor no mundo para servir de mãe à menina. E assim,
chegou aos seus braços a décima sétima criança, a quem criou com o mesmo
zelo e amor que dedicara aos outros.
Anos antes de sua morte,
um dos filhos ficou muito doente e resolvi fazer-lhe uma visita. Na
ocasião conversamos um bom tempo dividindo um bule de café, e ela me
falou com detalhes desde o nascimento deste filho. O dilema da
descoberta da paralisia infantil logo nos primeiros anos de vida, das
limitações que a doença impôs, e da promessa de levá-lo todos os dias à
igrejinha da cidade ao nascer do dia, pois lá ela rogava a Maria de
Nazaré, dizendo “só a senhora sabe o que é padecer pelo sofrimento de um
filho”.
Segundo ela, conforme o garoto ia crescendo, mesmo com a
dificuldade de carregá-lo nos braços sozinha, não deixou de ir à igreja
nem um dia sequer, e quando ele já estava com sete anos de idade, numa
manhã, ele lhe pediu que o colocasse em pé porque andaria até o altar.
Foi uma surpresa e ao mesmo tempo uma alegria ver o filho dando os
primeiros passos sem a ajuda de ninguém – “eu fiz a minha parte,
Juliana. E Maria fez a dela” – me disse. Deste momento em diante o filho
nunca mais parou de andar e enfrentou suas lutas contando sempre com a
ajuda da mãe adorada. Concluiu três faculdades, se tornou funcionário
público federal, casou-se e formou a própria família.
Ela ia
mesclando a narrativa com lágrimas de emoção e a alegria que lhe era
peculiar, mas não terminamos a história e nem o bule de café, porque
enquanto narrava com tanto carinho aqueles fatos, o filho desencarnava
na UTI do hospital. Então, eu vi em seus olhos a dor comum que dilacera o
coração de uma mãe diante da partida de um filho, mas também fui capaz
de ver além destas coisas, vi a resignação viva frente à vontade divina,
e posso dizer que resignar-se foi a marca característica deste
Espírito.
Apesar da gritante diferença moral entre ela e o
marido, os dois chegaram a completar 75 anos de casamento – algo
raríssimo. Na ocasião dei-lhe um abraço e perguntei em particular o que
representava para ela todos aqueles anos. A resposta veio embrulhada
cuidadosamente em um meio sorriso, “Ah, minha filha! Mesmo não tendo
vivido um dia sequer de felicidade ao lado dele, agradeço a Deus pelo
homem que me deu o tesouro que foi os meus filhos”.
Pouco tempo
depois o marido adoeceu e estava presente na noite do seu desencarne,
feito de forma sofrida e desassossegada, e ela estava lá, sentada ao seu
lado prestando-lhe assistência. Fiquei um bom tempo analisando em
silêncio a cena, e ela me contou que há mais de uma semana ele vinha
chamando-a incessantemente, pedindo perdão sem parar, citando erros e
ofensas, faltas cometidas como marido e como pai, cenas de um passado
muito distante que ela havia superado, mas que para ele continuavam
nítidas na consciência. Segundo os filhos, que também estavam presentes,
a cada pedido de perdão ela respondia, “esqueça isso, porque na verdade
nunca consegui sentir raiva ou cheguei a ficar ofendida. Apenas fique
em paz”.
Tendo ultrapassado a marca dos 90 anos de idade, esta
mulher certamente se tornou um Espírito completista, como define André
Luiz nas obras de Chico Xavier, referindo-se àqueles que conseguem
retornar ao plano espiritual após ter cumprido a maior parte de sua
programação reencarnatória. O exemplo vivo de que invariavelmente todos
nós seremos submetidos às provas, mas que a diferença fundamental de
sermos ou não aprovados é a aplicação efetiva do amor.
Quando
aprendermos a amar, não nos revoltaremos com as dificuldades, revezes e
amarguras da vida, assim como as faltas dos que caminham conosco não nos
afetarão mais. Como disse Kardec, “quando me sobrevinha uma decepção,
uma contrariedade qualquer, eu me elevava pelo pensamento acima da
humanidade e me colocava antecipadamente na região dos Espíritos e,
desse ponto culminante, donde divisava o da minha chegada, as misérias
da vida deslizavam por sobre mim sem me atingirem. Tão habitual se me
tornara esse modo de proceder, que os gritos dos maus jamais me
perturbaram
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