Diz antigo rifão que “mortalha não tem bolso”. A filosofia popular
quer dizer que para os mortos terminaram todos os interesses. A maioria
dos homens observa na morte o ponto final da vida. Nessa conceituação do
transe derradeiro do corpo físico, os sentimentos mais belos que
exornam a personalidade desaparecem com o cadáver, no banquete dos
vermes.
Comumente, as criaturas temem a grande transformação. No leito dos
moribundos, verifica-se o duelo cruel, em que a morte é sempre o
adversário vitorioso. Não prevalecem aí os regulamentos alusivos à idade
dos contendores, não prepondera o parecer dos médicos, nem o ritual dos
sacerdotes. O inimigo invisível triunfa sempre, deixando às testemunhas
amedrontadas os despojos do vencido, com passagem direta para o forno
crematório ou para as estações subterrâneas, onde os ossos do morto
repousarão, de acordo com as possibilidades financeiras da família. Há
túmulos gloriosos, como os cenotáfios ilustres; e multiplicam-se, em
toda parte, as sepulturas humildes, através das quais os filhos dos
homens adubam incessantemente o solo, enriquecendo-o de húmus
fecundante.
A alma do morto, porém, segue a sua trajetória. Impossível extinguir
nela os sentimentos, as disposições interiores, as características, os
afetos, que se espiritualizarão, vagarosamente, com o tempo e com o
auxilio do Divino Poder. E porque as afinidades psíquicas são fatais
como as leis biológicas, os desencarnados frequentemente gastam anos a
desatar os laços que os prendem ao mundo, quando é preciso, de fato,
desfazê-los, consoante os imperativos da evolução espiritual.
Muitos deles, dos que já atravessaram a corrente do Estige,
desejariam a libertarão imediata de todas as influências
terrestres. Entretanto, a alma é a sede viva do sentimento e de modo
algum poderiam trair o coração. Constrangidos a seguir os vivos pela
amorosa atração que lhes vibra no ser, demoram algum tempo entre as
sombras que se estendem do fundo vale da incerteza ao monte luminoso da
decisão.
Existiu um jovem irlandês, de nome Cornélius Magrath, que morreu aos
vinte e dois anos, com a estatura de mais de dois metros e meio. Tendo
despertado muito interesse da Ciência pelo seu caso de gigantismo, pediu
aos amigos e pagou para que seu corpo fosse atirado ao mar, quando a
morte lhe arrebatasse a vida. Todavia, mau grado ao seu desejo, a
medicina da Inglaterra adquiriu-lhe o esqueleto, que foi conservado
atenciosamente na Associação dos Cirurgiões de Londres, com objetivo de
estudo.
Ocorre o mesmo com alguns mortos da Terra, que suplicam e pagam para
que sua alma seja atirada ao oceano do esquecimento, de modo a se
subtraírem à curiosidade dos vivos; mas a redenção exige o contrário e o
Espírito semi-liberto permanece, por tempo indeterminado, na vizinhança
dos homens, atendendo, muitas vezes, a imposições estranhas à sua
própria vontade.
No quadro de obrigações dessa natureza, temos um companheiro que
recebeu a incumbência de demorar alguns anos entre as associações
terrenas, para suportar as dolorosas trepanações dos que fazem a
cirurgia dos estilos, com objetivo de esclarecimento geral. Sofria
bastante, na submissão a esse processo de auxiliar a Ciência, porque nem
todos os cirurgiões o examinavam com a precisa assepsia espiritual, mas
obedecia, satisfeito, consciente de cooperar na solução de grandes
problemas do destino e da morte. No desenvolvimento de seus misteres,
todavia, foi assaltado pelo incoercível desejo de revelar-se aos amigos
de outro tempo, encasulados na carne, e, para tanto, começou a
escrever-lhes páginas sentidas de carinho e saudade, vazando-as com o
sentimento de seu coração. Seus companheiros antigos, porém, não lhe
compreenderam as novas disposições. Uniram-se aos intransigentes
cirurgiões da literatura e exigiram que o desencarnado viesse
atendê-los, tal qual vivera no mundo, cheio das enfermidades e
idiossincrasias oriundas dos vários agentes físicos que lhe determinavam
a organização psíquica defeituosa. Sensível e afetuoso, ele lhes
entregou os pensamentos mais nobres, porém os amigos reclamaram-lhe as
vísceras mais grosseiras ; trouxe-lhes as idéias novas que lhe banhavam o
íntimo, entretanto, requisitaram-lhe as velhas fórmulas que, noutra
época, lhe encarceravam o ser ; dedicou-lhes a expressão mais alta de
sua vida espiritual, mas pediram-lhe a revelação da vida mais baixa, com
a apresentação das próprias glândulas doentes que a terra guardou para
felicidade dele.
Algo preocupado, procurou o esclarecimento dos orientadores do
serviço. Expôs o seu caso, comentou suas mágoas e apresentou suas
razões.
Um deles, porém, o que chefiava o trabalho geral, pelo tesouro de
amor e sabedoria que ajuntou no curso dos séculos, respondeu com
serenidade :
– Cale em seu coração, meu filho, as angústias do homem antigo.
Volte ao seu campo de ação e satisfaça a própria consciência. Todo
particularismo é cárcere. Lembre-se de que as dádivas do Pai são comuns a
todos nós, que as idéias não têm nome e de que o espírito é universal.
Nem mais uma palavra. O companheiro sorriu, trocou o manto roto,
calçou duas sandálias novas, voltou ao serviço e, como aconteceu ao
jovem irlandês que prosseguiu exibindo os ossos, por interesse da
Ciência, ele continuou a espalhar as sementes das idéias, por amor a
Deus.
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