Justiça e discurso
As
pessoas costumam discursar a respeito da justiça. Em geral, o que não agrada
é tido como injusto. Esse hábito em muito se assemelha à forma pela qual as
crianças veem o mundo. O discurso infantil é centrado no atendimento dos
próprios desejos. Qualquer obstáculo é visto como indevido. Essa
infantilidade no modo de perceber o mundo se reflete nos mais variados
contextos. No trabalho, o designado para desempenhar uma tarefa árdua ou dar
uma notícia desagradável sente-se injustiçado. Dentre os filhos, se um
precisa devotar mais tempo a pais velhos ou enfermos, a percepção costuma ser
essa. Esse sentir focado no egoísmo também assume outros contornos. Ganha
importância na sociedade a cultura da indenização. Ao menor transtorno,
busca-se responsabilizar o pretenso causador. Em face de desentendimentos,
procura-se colocar tudo em pratos limpos. É como se ninguém
estivesse disposto a compreender, a contemporizar e a perdoar. Contudo, o
discurso da busca de justiça muitas vezes disfarça o sentimento de
vingança. No mundo, muitos crimes se praticam sob a justificativa de se estar
fazendo ou buscando justiça. Para quem se afirma cristão, é imperioso
refletir um pouco antes de trilhar esse caminho. Jesus sempre se posicionou
com bastante firmeza. Defendeu a mulher adúltera, em face de quem queria
apedrejá-la. Sustentou com vigor que o templo fosse utilizado de forma santa,
em vez de se converter em um mercado. Ele se mantinha vigilante em todos os
atos alusivos à justiça para com os outros. Nunca lhe faltou coragem e nem
capacidade de argumentação. Contudo, quando encaminhado à cruz, não clamou
pela justiça dos homens. Ao assim agir, sinalizou a grandeza que existe em
abdicar das próprias razões, em prol de um objetivo maior. Por certo, tal
atitude não implicou desconsideração para com o trabalho dos juízes honestos no
mundo. Mas estabeleceu um padrão de prudência para todos os discípulos de seu
evangelho. Quando em pauta interesses alheios, é importante atentar para o
estrito cumprimento dos imperativos legais. Entretanto, quando os assuntos
difíceis e dolorosos envolvem o eu, convém moderar os impulsos de
reivindicação. A visão humana é incompleta para perceber a extensão dos
dramas que se apresentam. Muitas vezes, a aparente injustiça que se vive
representa o resgate de graves equívocos do passado. É difícil ter certeza
quanto à própria posição perante a vida, considerada nos termos mais vastos de
várias encarnações. Na dúvida, a abstenção de reclamos é uma medida a ser
considerada. Antes de discursar contra qualquer injustiça pessoal, pense
nisso.
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