Quando virmos alguém, quem
quer que seja, em condições de dificuldade, se não pudermos de pronto
ampará-lo, pelo menos procuremos não julgá-lo pelas aparências. Muito
especialmente em se tratando de criança. Ninguém sabe a rigor, em
princípio, que alma estará animando aquele corpo. No mínimo, um irmão na
romagem evolutiva. Poderá ser, porventura, por menos que se espere,
aquele a quem as gerações futuras homenagearão com o preito merecido por
grandes feitos ou pelo exemplo deixado.
Um garoto desceu certo dia
de uma favela no Rio de Janeiro, deu de frente com modesta tipografia e
– homem feito – fundou a Academia Brasileira de Letras. Que se poderia
esperar de outro garoto nascido de mãe escrava e de pai fidalgo
português, que pouco faria por merecer essa condição? É o que
pretendemos rememorar aqui.
Transcorria o ano de 1830,
quando o Brasil contava apenas oito anos de Independência. A Bahia, no
entanto, um pouco menos, pois vivera a luta pela emancipação e pela
unidade nacional. E nessa luta tombaram muitos heróis, entre eles Soror
Angélica. Pois, nesse ano, nascera de uma negra mina e desse fidalgo,
como de resto acontecia por esses brasis afora, o menino Luís Gonzaga, o
santo do dia das folhinhas. Atestava-se a catolicidade dominante à
época, e se fizera hábito por muitos anos, ainda, a escolha do santo do
dia para nome dos recém-nascidos. Por extenso seu nome seria exatamente
Luís Gonzaga Pinto da Gama. Mas a explicação da vinda daquele Espírito
adrede preparado ao regaço maternal de uma escrava será dado pelo que se
contém no capítulo de “O Livro dos Espíritos” referente à escolha do
gênero de provas por parte do reencarnante. Especialmente a Questão 260,
que ensina:
“Forçoso
é que seja posto num meio onde possa sofrer a prova que pediu. Pois
bem! É necessário que haja analogia. Para lutar contra o instinto do
roubo, preciso é que se ache em contato com gente dada à prática de
roubar”.
Deve ser exatamente por
isso que o nosso Luís Gama escolheu provas por demais ásperas,
mergulhando na carne no seio da raça espezinhada para viver plenamente o
potencial de sacrifícios, desenvolvendo a tenacidade como verdadeiro
escudo. Vindo ao mundo numa fusão de raças, haveria de sentir todo o
clamor da que era aviltada. Pois, tinha apenas 10 anos quando, a 10 de
Novembro de 1840, o pai, jogador inveterado, premido por acordo com o
dono de uma casa de tavolagem, resolveu fazer um negócio. Levou o garoto
pela mão para visitar um navio que partiria para o Rio de Janeiro, o
“Saraiva”. Propositadamente deixou-o com estranhos, prometendo voltar.
Para logo o garoto, muito atilado, exclamou com segurança:
“- Meu pai, o senhor me vendeu!”
Fora esse o negócio. Como
os irmãos a José, o pai o vendera por alguns mil-réis. Iniciara-se lhe o
pesadelo. Coloque-se qualquer de nós por um instante fugidio na posição
do pequeno Luís, vendo desmoronarem-se diante dele, aos 10 anos, todas
as ilusões, todas as esperanças... De Salvador veio ao Rio e depois para
São Paulo. Em breve o negrinho estava exposto à venda no mercado
escravagista de Campinas.
Há, desse tempo, uma
versão anedótica, a de que o Conde de Três-Rios esteve prestes a
compra-lo. Pensando um pouco, ter-lhe-ia dito:
“- Já não foi por boa coisa que te venderam tão pequeno.”
A curiosidade do episódio está em que, muitos anos depois, o Conde o teria como um de seus melhores amigos.
Irrequieto, Luís desde
cedo mostrava traços de sua superioridade e a ânsia de instruir-se.
Tanto que teria aprendido as primeiras letras às ocultas com um filho de
seu proprietário. Com essa chave preciosa se abriria caminhos para o
futuro.
Certo é que vamos vê-lo
mais tarde em busca de emprego. Foi tipógrafo. Daí para o jornalismo foi
um pulo. Ora, ninguém, porque saiba ler e escrever, porque aprenda a
manejar uma caixa de tipos gráficos, revela por isso dotes de
inteligência e de cultura invulgares. Aquela cultura e aquela
inclinação lhe vieram por força de outras vidas. Passou a escrever no
jornal “Ipiranga”, depois no “Radical Paulistano”. Instalou banca de
advocacia e se fez ao mesmo tempo jornalista veemente. Descobriu-se
orador de grandes platéias emocionadas. Escreveu poesias. Inúmeras vezes
apresentava defesas extraordinárias no Tribunal. Vítimas de críticas
mordazes e insultuosas, que lhe tentavam macular a origem, respondia-as
com sagazes ironias, deixando o opositor arrependido da provocação.
Como José do Egito,
vendido, não se curvou ao que seria para ele o destino traçado,
implacável. Não nascemos para curvar-nos ás dificuldades, mas para
superá-las, ou para tenta-lo com dignidade e valor. E ele venceu. Sua
pena e sua voz se ergueriam, varonis, contra o desamor e a opressão, que
experimentara ele próprio.
Conta-se que, certa feita, entrou em seu escritório um escravo, a pedir por sua causa. Logo a seguir, o senhor, exclamando:
“- Que te falta? Queres deixar o cativeiro de um homem bom para seres infeliz em outra parte?”
Ao que, por ele, respondeu Luís Gama:
“ - Falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira.”
Luís Gama não viu, como
encarnado, a epopéia do 13 de Maio. Desencarnara 6 anos antes, a 24 de
agosto de 1882. Já trouxemos a estas páginas a sua bela mensagem
mediúnica sobre o velho ideal, que não morre, mas que se transmuda em
gloriosa ascensão.[1]
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