O PODER DO AMOR – TEXTOS PARA REFLEXÃO
Era
mais de meia-noite numa comunidade barra pesada do Rio de Janeiro. Não
que os moradores não soubessem que se tratava mesmo era de uma favela,
mas é que o nome comunidade descrevia melhor a sua casa. Em todo caso,
todos estavam atentos aos barulhos de tiro e sirenes de polícia
eventuais de toda madrugada, era mais uma comunidade da cidade em guerra
com outra comunidade. O Rio tem essa característica peculiar de unir as
pessoas na praia e nos campos de futebol, e então separá-las, ao ponto
de torná-las inimigas mortais, quando estão no topo de seus respectivos
morros.
Mas
um morro é algo fácil de subir, o difícil é conseguir passar pelos
garotos de fuzil após a hora do toque de recolher. Flordelis sabia que o
toque já tinha passado a muito tempo, que era mais seguro estar em casa
dormindo ou assistindo TV, mas mesmo assim ela preferiu arriscar subir o
morro. Era uma aposta: a sua vida pela vida de algum garoto de fuzil
que conseguisse retirar da guerra. Nenhuma aposta parece arriscada o
suficiente para quem traz o amor consigo.
Fernando
[1] era um dos garotos de fuzil. Nem sempre carregou um fuzil. Quando
fez 10 anos o chefe do tráfego no morro ofereceu uma “semanada” para que
ele ficasse toda a noite de olho nas vias de subida da comunidade, e se
visse algum policial ou sujeito estranho, deveria avisar pelo rádio.
Fernando foi subindo na carreira do tráfego de drogas, graças a sua
capacidade e inteligência, e também graças aos garotos e garotas da zona
sul que vinham quase todo dia trazer dinheiro pro seu chefe. Ainda
assim, era uma profissão arriscada, e ele sabia que naquele dia, 7 anos
depois, talvez não carregasse mais um fuzil por muito tempo. Mal sabia o
garoto o que o destino lhe reservara.
“Fernando, tem uma dona lá embaixo querendo falar contigo... É uma tal de Flordelis.”
“Manda essa maluca vazar daqui, não sabe que tamô em guerra?”
“Já falei Fernando, a dona é maluca mesmo. Disse que não sai de jeito nenhum enquanto não falar contigo.”
“Vamô ver se ela não sai...”
Fernando
desceu a encosta até a ruela onde estava Flordelis, e deu cinco tiros
de fuzil pro alto. As balas caíram no matagal e não acertaram ninguém,
mas Flordelis não esboçou reação. Continuou olhando firme em seus olhos,
expressão determinada e um leve sorriso nos lábios.
“Dona, sai fora daqui, senão vai acabar morta se houver invasão!”
“Eu só saio se falar contigo.”
“O que diabos você quer falar comigo? Já disse que sou bandido mesmo, não tem outra vida pra mim dona...”
“Mas eu te amo, e vou te tirar dessa vida. Vou te mostrar uma outra vida.”
Fernando
permaneceu imóvel, quase em estado de choque. Seus amigos de fuzil
preferiram deixá-lo lá com a tal Flordelis, eles não entendiam muito
esse negócio de amor...
E
nem Fernando. Ele nunca havia considerado que poderia estar conectado
dessa forma a uma pessoa desconhecida. Amor, conhecia só o de mãe, o de
irmão, e olhe lá. Depois que passou a andar de fuzil na mão, mesmo sua
mãe e seus irmãos passaram a lhe ver com outros olhos, o mesmo tipo de
olhar que via todos os dias vindo das pessoas do asfalto. O olhar da
desconfiança. O olhar da desconecção. Fernando achava que a sociedade
era sua inimiga.
Mas
aquela palavra, vinda daquela mulher, tinha poder. O poder do amor. O
poder de mudar vidas para sempre. Desde aquela noite, Fernando baixou o
fuzil, e nunca mais o levantou. Foi o primeiro garoto adotado pela mãe
Flordelis, e logo em seguida já tinha identidade, CPF, e emprego. Depois
entrou na faculdade de direito e hoje está se formando.
Depois
dele, Flordelis ainda adotou dezenas de crianças, desde bebês a
adolescentes, e hoje vive às custas de muita batalha junto a seu marido,
e da ajuda de alguns empresários e pessoas de bem.
Este conto é baseado em uma história real. Já Flordelis é totalmente real
[2]. É um ser humano que ajuda e educa outros seres humanos para a
vida, porque os ama... Talvez não tenhamos a capacidade de amar como
ela, mas podemos aprender algo com a sua história: que o amor pode unir
qualquer coisa, mesmo aquelas que pareciam para sempre desconectadas. E
que não é ignorando os outros seres humanos, mas lhe dando as mãos, que
vamos conseguir efetivamente mudar alguma coisa para melhor. Isso não é
piegas ou clichê, porque o verdadeiro amor nunca foi piegas e nunca foi
clichê.
***
[1] Nome fictício, porque existem pessoas que crêem que criminosos nunca se recuperam.
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