EU
E OUTRAS POESIAS
Augusto
dos Anjos
|
Monólogo
de uma sombra
“Sou uma
Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo
das moneras...
Pólipo
de recônditas reentrâncias,
Larva de
caos telúrico, procedo
Da escuridão
do cósmico segredo,
Da substância
de todas as substâncias!
A simbiose
das coisas me equilibra.
Em minha
ignota mônada, ampla, vibra
A alma
dos movimentos rotatórios...
E é de
mim que decorrem, simultâneas,
A saúde
das forças subterrâneas
E a morbidez
dos seres ilusórios!
Pairando
acima dos mundanos tetos,
Não conheço
o acidente da Senectus
-- Esta
universitária sanguessuga
Que produz,
sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento
do papirus
E a miséria
anatômica da ruga!
Na existência
social, possuo uma arma
-- O metafisicismo
de Abidarma --
E trago,
sem bramânicas tesouras,
Como um
dorso de azêmola passiva,
A solidariedade
subjetiva
De todas
as espécies sofredoras.
Como um
pouco de saliva quotidiana
Mostro
meu nojo à Natureza Humana.
A podridão
me serve de Evangelho...
Amo o esterco,
os resíduos ruins dos quiosques
E o animal
inferior que urra nos bosques
É com certeza
meu irmão mais velho!
Tal qual
quem para o próprio túmulo olha,
Amarguradamente
se me antolha,
À luz do
americano plenilúnio,
Na alma
crepuscular de minha raça
Como uma
vocação para a Desgraça
E um tropismo
ancestral para o Infortúnio.
Aí vem
sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo
no deserto das idéias
O desespero
endêmico do inferno,
Com a cara
hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro
doido das origens,
Que se
chama o Filósofo Moderno!
Quis compreender,
quebrando estéreis normas,
A vida
fenomênica das Formas,
Que, iguais
a fogos passageiros, luzem.
E apenas
encontrou na idéia gasta,
O horror
dessa mecânica nefasta,
A que todas
as coisas se reduzem!
E hão de
achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a
esteira sarcófaga das pestes
A mosrtrar,
já nos últimos momentos,
Como quem
se submete a uma charqueada,
Ao clarão
tropical da luz danada,
O espólio
dos seus dedos peçonhentos.
Tal a finalidade
dos estames!
Mas ele
viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora
lei que aperta
Todos os
agregados perecíveis,
Nas eterizações
indefiníveis
Da energia
intra-atômica liberta!
Será calor,
causa ubíqua de gozo,
Raio X,
magnetismo misterioso,
Quimiotaxia,
ondulação aérea,
Fonte de
repulsões e de prazeres,
Sonoridade
potencial dos seres,
Estrangulada
dentro da matéria!
E o que
ele foi: clavículas, abdômen,
O coração,
a boca, em síntese, o Homem,
-- Engrenagem
de vísceras vulgares --
Os dedos
carregados de peçonha,
Tudo coube
na lógica medonha
Dos apodrecimentos
musculares.
A desarrumação
dos intestinos
Assombra!
Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro
daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria
hedionda, brincam,
Como as
cadelas que as dentuças trincam
No espasmo
fisiológico da fome.
É uma trágica
festa emocionante!
A bacteriologia
inventariante
Toma conta
do corpo que apodrece...
E até os
membros da família engulham,
Vendo as
larvas malignas que se embrulham
No cadáver
malsão, fazendo um s.
E foi então
para isto que esse doudo
Estragou
o vibrátil plasma todo,
À guisa
de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio
graduado, consumir-se,
E após
tantas vigílias, reduzir-se
À herança
miserável dos micróbios!
Estoutro
agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo
sodomita exalta,
Nutrindo
sua infâmia a leite e a trigo...
Como que,
em suas clélulas vilíssimas,
Há estratificações
requintadíssimas
De uma
animalidade sem castigo.
Brancas
bacantes bêbadas o beijam.
Suas artérias
hírcicas latejam,
Sentindo
o odor das carnações abstêmias,
E à noite,
vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio
bazer domeretrício,
O cuspo
afrodisíaco das fêmeas.
No horror
de sua anômala nevrose,
Toda a
sensualidade da simbiose,
Uivando,
à noite, em lúbricos arroubos,
Como no
babilônico sansara,
Lembra
a fome incoercível que escancara
A mucosa
carnívora dos lobos.
Sôfrego,
o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão
congênita, bastarda,
Do seu
zooplasma ofídico resulta...
E explode,
igual à luz que o ar acomete,
Com a veemência
mavórtica do aríete
E os arremessos
de uma catapulta.
Mas muitas
vezes, quando a noite avança,
Hirto,
observa através a tênue trança
Dos filamentos
fluídicos de um halo
A destra
descarnada de um duende,
Que tateando
nas tênebras, se estende
Dentro
da noite má, para agarrá-lo!
Cresce-lhe
a intracefálica tortura,
E de su’alma
na caverna escura,
Fazendo
ultra-epiléticos esforços,
Acorda,
com os candeeiros apagados,
Numa coreografia
de danados,
A família
alarmada dos remorsos.
É o despertar
de um povo subterrâneo!
É a fauna
cavernícola do crânio
-- Macbeths
da patológica vigília,
Mostrando,
em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades
sangüinárias
Que ele
tem praticado na família.
As alucinações
tácteis pululam.
Sente que
megatérios o estrangulam...
A asa negra
das moscas o horroriza;
E autopsiando
a amaríssima existência
Encontra
um cancro assíduo na consciência
E três
manchas de sangue na camisa!
Míngua-se
o combustível da lanterna
E a consciência
do sátiro se inferna,
Reconhecendo,
bêbedo de sono,
Na própria
ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade
de horroroso,
Que é talvez
propriedade do carbono!
Ah! Dentro
de toda a alma existe a prova
De que
a dor como um dartro se renova,
Quando
o prazer barbaramente a ataca...
Assim também,
observa a ciência crua,
Dentro
da elipse ignívoma da lua
A realidade
de uma esfera opaca.
Somente
a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda
as rochas rígidas, torna água
Todo o
fogo telúrico profundo
E reduz,
sem que, entanto, a desintegre,
À condição
de uma planície alegre,
A aspereza
orográfica do mundo!
Provo desta
maneira ao mundo odiento
Pelas grandes
razões do sentimento,
Sem os
métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões
gritadores da dialética,
Que a mais
alta expressãoda dor estética
Consiste
essencialmente na alegria.
Continua
o martírio das criaturas:
-- O homicídio
nas vielas mais escuras,
-- O ferido
que a hostil gleba atra escarva,
-- O último
solilóquio dos suicidas --
E eu sinto
a dor de todas essas vidas
Em minha
vida anônima de larva!”
Disse isto
a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz
da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsa
de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava
ouvir monótonas corujas,
Executando,
entre daveiras sujas,
A orquestra
arrepiadora do sarcasmo!
Era a elegia
panteísta do Universo,
Na produção
do sangue humano imenso,
Prostituído
talvez, em suas bases...
Era a canção
da Natureza exausta,
Chorando
e rindo na ironia infausta
Da incoerência
infernal daquelas frases.
E o turbilhão
de tais fonemas acres
Trovejando
grandíloquos massacres,
Há-de ferir-me
as auditivas portas,
até que
minha efêmera cabeça,
Reverta
à quietação datrava espessa
E à palidez
das fotosferas mortas!
Agonia
de um filósofo
Consulto
o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda.
E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente
me assombra e eu nele rolo
Com a eólica
fúria do harmatã inquieto!
Assisto
agora à morte de um inseto!...
Ah! todos
os fenômenos do solo
Parecem
realizar de pólo a pólo
O ideal
do Anaximandro de Mileto!
No hierático
areópago heterogêneo
Das idéias,
percorro como um gênio
Desde a
alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos
mundos o velário espesso;
E em tudo
igual a Goethe, reconheço
O império
da substância universal!
O Morcego
Meia-noite.
Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus!
E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta
ardência orgânica dasede,
Morde-me
a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar
levantar outra parede...”
-- Digo.
Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho
o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente
sobre a minha rede!
Pego de
um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo.
Minh’alma se concentra.
Que ventre
produziu tão feio parto?!
A Consciência
Humana é este morcego!
Por mais
que a gente faça, à noite ele entra
Imperceptivelmente
em nosso quarto!
Psicologia
de um vencido
Eu, filho
do carbono e do amoníaco,
Monstro
de escuridão e rutilância,
Sofro,
desde a epigênese da infância,
A influência
má dos signos do zodíaco.
Produndissimamente
hipocondríaco,
Este ambiente
me causa repugnância...
Sobe-me
à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se
escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme
-- este operário das ruínas --
Que o sangue
podre das carnificinas
Come, e
à vida em geral declara guerra,
Anda a
espreitar meus olhos para roê-los,
E há de
deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade
inorgânica da terra!
A Idéia
De onde
ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa
luz que sobre as nebulosas
Cai de
incógnitas criptas misteriosas
Como as
estalactites duma gruta?!
Vem da
psicogenética e alta luta
Do feixe
de moléculas nervosas,
Que, em
desintegrações maravilhosas,
Delibera,
e depois, quer e executa!
Vem do
encéfalo absconso que a constringe,
Chega em
seguida às cordas da laringe,
Tísica,
tênue, mínima, raquítica...
Quebra
a força centrípeta que a amarra,
Mas, de
repente, e quase morta, esbarra
No molambo
da língua paralítica!
O Lázaro
da pátria
Filho podre
de antigos Goitacases,
Em qualquer
parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências
de peçonha,
Marcas
oriundas de úlceras e antrazes.
Todos os
cinocéfalos vorazes
Cheiram
seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no
tórax a pressão medonha
Do bruto
embate férreo das tenazes.
Mostra
aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda
elefantíase dos dedos
Há um cansaço
no Cosmos... Anoitece.
Riem as
meretrizes no Cassino,
E o Lázaro
caminha em seu destino
Para um
fim que ele mesmo desconhece!
Idealização
da humanidade futura
Rugia nos
meus centros cerebrais
A multidão
dos séculos futuros
-- Homens
que a herança de ímpetos impuros
Tornara
etnicamente irracionais!
Não sei
que livro, em letras garrafais,
Meus olhos
liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se
os partos mais obscuros,
Dentre
as genealogias animais!
Como quem
esmigalha protozoários
Meti todos
os dedos mercenários
Na consciência
daquela multidão...
E, em vez
de achar a luz que os Céus inflama,
Somente
achei moléculas de lama
E a mosca
alegre da putrefação!
Soneto
Ao meu
primeiro filho nascidomorto com 7 meses incompletos.
2 fevereiro
1911.
Agregado
infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro
de carne agonizante,
Filho da
grande força fecundante
De minha
brônzea trama neuronial,
Que poder
embriológico fatal
Destruiu,
com a sinergia de um gigante,
Em tua
morfogênese de infante
A minha
morfogênese ancestral?!
Porção
de minha plásmica substância,
Em que
lugar irás passar a infância,
Tragicamente
anônimo, a feder?!
Ah! Possas
tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente
dissolvido
Na noumenalidade
do NÃO SER!
Versos
a um cão
Que força
pôde adstrita e embriões informes,
Tua garganta
estúpida arrancar
Do segredo
da célula ovular
Para latir
nas solidões enormes?
Esta obnóxia
inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima
é, para provar
A incógnita
alma, avoenga e elementar
Dos teus
antepassados vemiformes.
Cão! --
Alma do inferior rapsodo errante!
Resigna-a,
ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala
dos latidos ancestrais...
E irás
assim, pelos séculos adiante,
Latindo
a esquisitíssima prosódia
Da angústia
hereditária dos teus pais!
O Deus-Verme
Fator universal
do transformismo.
Filho da
teleológica matéria,
Na superabundância
ou na miséria,
Verme -- é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais
emprega o acérrimo exorcismo
Em sua
diária ocupação funérea,
E vive
em contubérnio com a bactéria,
Livre das
roupas do antropomorfismo.
Almoça
a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos,
rói vísceras magras
E dos defuntos
novos incha a mão...
Ah! Para
ele é que a carne podre fica,
E no inventário
da matéria rica
Cabe aos
seus filhos a maior porção!
Debaixo
do tamarindo
No tempo
de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma
vela fúnebre de cera,
Chorei
bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos
trabalhos!
Hoje, esta
árvore, de amplos agasalhos,
Guarda,
como uma caixa derradeira,
O passado
da Flora Brasileira
E a paleontologia
dos Carvalhos!
Quando
pararem todos os relógios
De minha
vida e a voz dos necrológios
Gritar
nos noticiários que eu morri,
Voltando
à pátria da homogeneidade,
Abraçada
com a própria Eternidade
A minha
sombra há de ficar aqui!
As cismas
do destino
I
Recife,
Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo
em direção à casa do Agra,
Assombrado
com a minha sombra magra,
Pensava
no Destino, e tinha medo!
Na austera
abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas
luzia... O calçamento
Sáxeo,
de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava
a polidez de um crânio alvo.
Lembro-me
bem. A ponte era comprida,
E a minha
sombra enorme enchia a ponte,
Como uma
pele de rinoceronte
Estendida
por toda a minha vida!
A noite
fecundava o ovo dos vícios
Animais.
Do carvão da treva imensa
Caía um
ar danado de doença
Sobre a
cara geral dos edifícios!
Tal uma
horda feroz de cães famintos,
Atravessando
uma estação deserta,
Uivava
dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha
espantada dos instintos!
Era como
se, na alma da cidade,
Profundamente
lúbrica e revolta,
Mostrando
as carnes, uma besta solta
Soltasse
o berro da animalidade.
E aprofundando
o raciocínio obscuro,
Eu vi,
então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho
genésico dos sexos,
Fazendo
à noite os homens do Futuro.
Livres
de microscópios e escalpelos,
Dançavam,
parodiando saraus cínicos,
Bilhões
de centrossomas apolínicos
Na câmara
promíscua do vitellus.
Mas, a
irritar-me os globos oculares,
Apregoando
e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros,
ainda na placenta,
Estendiam-me
as mãos rudimentares!
Mostravam-me
o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade
igualitária,
Que fez
minha família originária
Do antro
daquela fábrica terrível!
A corrente
atmosférica mais forte
Zunia.
E, na ígnea crosta do Cruzeiro,
Julgava
eu ver o fúnebre candeeiro
Que há
de me alumiar na hora da morte.
Ninguém
compreendia o meu soluço,
Nem mesmo
Deus! Da roupa pelas brechas,
O ventobravo
me atirava flechas
E aplicações
hiemais de gelo russo.
A vingança
dos mundos astronômicos
Enviava
à terra extraordinária faca,
Posta em
rija adesão de goma laca
Sobre os
meus elementos anatômicos.
Ah! Com
certeza, Deus me castigava!
Por toda
a parte, como um réu confesso,
Havia um
juiz que lia o meu processo
E uma forca
especial que me esperava!
Mas o vento
cessara por instantes
Ou, pelo
menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me
o peito arqueado e porco
Num núcleo
de substâncias abrasantes.
É bem possível
que eu umdia cegue.
No ardor
desta letal tórrida zona,
A cor do
sangue é a cor que me impressiona
E a que
mais neste mundo me persegue!
Essa obsessão
cromática me abate.
Não sei
por que me vêm sempre à lembrança
O estômago
esfaqueado de uma criança
E um pedaço
de víscera escarlate.
Quisera
qualquer coisa provisória
Que a minha
cerebral caverna entrasse,
E até ao
fim, cortasse e recortasse
A faculdade
aziaga da memória.
Na ascensão
barométrica da calma,
Eu bem
sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma
população doente do peito
Tossia
sem remédio na minh’alma!
E o cuspo
que essa hereditária tosse
Golfava,
à guisa de ácido resíduo,
Não era
o cuspo só de um indivíduo
Minado
pela tísica precoce.
Não! Não
era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração
pútrida e crassa
Dos brônquios
pulmorares de uma raça
Que violou
as leis da Natureza!
Era antes
uma tosse ubíqua, estranha,
Igual ao
ruído de um calhau redondo
Arremessado
no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários
da montanha!
E a saliva
daqueles infelizes
Inchava,
em minha boca, de tal arte,
Que eu,
para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo,
aos poucos, a hemoptísis!
Na alta
alucinação de minhas cismas
O microcosmos
líquido da gota
Tinha a
abundância de uma artéria rota,
Arrebatada
pelos aneurismas.
Chegou-me
o estado máximo da mágoa!
Duas, três,
quatro, cinco, seis e sete
Vezes que
eu me furei com um canivete,
A hemoglobina
vinha cheia de água!
Cuspo,
cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma
de mínimas camândulas,
Benditas
sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente,
te segregam!
Escarrar
de um abismo noutro abismo,
Mandando
ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais
filosofia neste escarro
Do que
em toda a moral do Cristianismo!
Porque,
se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não
deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais
exprimiria o acérrimo asco
Que os
canalhas do mundo me provocam!
II
Foi no
horror dessa noite tão funérea
Que eu
descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força
visualística do lince,
A falta
de unidade na matéria!
Os esqueletos
desarticulados,
Livres
do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam,
com as brancas tíbias tortas,
Numa dança
de números quebrados!
Todas as
divindades malfazejas,
Siva e
Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando
o barulho dos engasgos,
Davam pancadas
no adro das igrejas.
Nessa hora
de monólogos sublimes,
A companhia
dos ladrões da noite,
Buscando
uma taverna que os açoite,
Vai pela
escuridão pensando crimes.
Perpetravam-se
os atos mais funestos,
E o luar,
da cor de um doente de icterícia,
Iluminava,
a rir, sem pudicícia,
A camisa
vermelha dos incestos.
Ninguém,
de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um
lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador
olho, ali posto
De propósito,
para hipnotizar-me!
Em tudo,
então, meus olhos distinguiram
Da miniatura
singular de uma aspa,
À anatomia
mínima da caspa,
Embriões
de mundos que não progrediram!
Ser cachorro!
Ganir incompreendidos
Verbos!
Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra
embrulhar-se na laringe,
Escapando-se
apenas em latidos!
Despir
a putrescível forma tosca,
Na atra
dissoluçào que tudo inverte,
Deixar
cair sobre a barriga inerte
O apetite
necrófago da mosca!
A alma
dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a
nesse interior duelo secreto
Entre a
ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão
que não chegou à língua!
Surpreendo-a
em quatrilhões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos
abalos
Que produzem
nos bois e nos cavalos
A contração
dos gritos instintivos!
Tempo viria,
em que, daquele horrendo
Caos de
corpos orgânicos disformes
Rebentariam
cérebros enormes,
Como bolhas
febris de água, fervendo!
Nessa época
que os sábios não ensinam,
A pedra
dura, os montes argilosos
Criariam
feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma
dos que raciocinam!
Almas pigméias!
Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição!
Mas vem o Tempo, e vence-o,
E o meu
sonho crescia nosilâncio,
Maior que
as epopéias carolíngias!
Era a revolta
trágica dos tipos
Ontogênicos
mais elementares,
Desde os
foraminíferos dos mares
À grei
liliputiana dos pólipos.
Todos os
personagens da tragédia,
Cansados
de viver na paz de Buda,
Pareciam
pedir com a boca muda
A ganglionária
célula intermédia.
A planta
que a canícula ígnea torra,
E as coisas
inorgânicas mais nulas
Apregoavam
encéfalos, medulas
Na alegria
guerreira da desforra!
Os protistas
e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários
e dos infusórios
Recebiam
com os seus órgãos sensóricos
O triunfo
emocional do regozijo.
E apesar
de já não ser assim tão tarde,
Aquela
humanidade parasita,
Como um
bicho inferior, berrava, aflita,
No meu
temperamento de covarde!
Mas, refletindo,
a sós, sobre o meu caso
Vi que,
igual a um amniota subterrâneo,
jazia atravassada
no meu crânio
A intercessão
fatídica do atraso!
A hipótese
genial do microzima
Me estrangulava
o pensamento guapo,
E eu me
encolhia todo como um sapo
Que tem
um peso incômodo por cima!
Nas agonias
do delirium-tremens,
Os bêbedos
alvares que me olhavam,
Com os
copos cheios esterilizavam
A substância
prolífica dos sêmens!
Enterravam
as mãos dentro das goelas,
E sacudidos
de um tremor indômito
Expeliam,
na dor forte do vômito,
Um conjunto
de gosmas amarelas.
Iam depois
dormir nos lupanares
Onde, na
glória da concupiscência,
Depositavam
quase sem consciência
As derradeiras
forças musculares.
Fabricavam
destarte os bastodermas,
Em cujo
repugnante receptáculo
Minha perscrutação
via o espetáculo
De uma
progênie idiota de palermas.
Prostituição
ou outro qualquer nome,
por tua
causa, embora o homem te aceite,
É que as
mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos
sem pai morrem de fome!
Por que
há de haver aqui tantos enterros?
Lá no “Engenho”
também, a morte é ingrata...
Há o malvado
carbúnculo que mata
A sociedade
infante dos bezerros!
Quantas
moças que o túmulo reclama!
E após
a podridão de tantas moças,
Os porcos
espojando-se nas poças
Da virgindade
reduzida à lama!
Morte,
ponto final da última cena,
Forma difusa
da matéria embele,
Minha filosofia
te repele,
Meu raciocínio
enorme te condena!
Diante
de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem
eficácia os amuletos,
Oh! Senhora
dos nossos esqueletos
E das caveiras
diárias que fabricas!
E eu desejava
ter, numa ânsia rara,
Ao pensar
nas pessoas que perdera,
A inconsciência
das máscaras de cera
Que a gente
prega, como um cordão, na cara!
Era um
sonho ladrão de submergir-me
Na vida
universal,e, em tudo imerso,
Fazer da
parte abstrada do Universo,
Minha morada
equilibrada e firme!
Nisto,
pior que o remorso do assassino,
Reboou,
tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora
voz interna,
o eco particular
do meu Destino;
III
“Homem!
por mais que a Idéia deintegres,
Nessas
perquisições que não têm pausa,
Jamais,
magro homem, saberás a causa
De todos
os fenômenos alegres!
Em vão,
com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril
terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes,
por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo
das lágrimas hediondas.
Negro e
sem fim é esse em que te mergulhas
lugar do
Cosmos, onde a dor infrene
É feita
como é feito o querosene
Nos recôncavos
úmidos das hulhas!
Porque,
para que a Dor perscrutes, fora
Mister
que, não como és, em síntese, antes
Fosses,
a refletir teus semelhantes,
A própria
humanidade sofredora!
A universal
complexidade é que Ela
Compreende.
E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda
assim, seu todo não Residencia
No quociente
isolado da parcela!
Ah! Como
o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas
nervosas que há nos tatos
Veio e
vai desde os tempos mais transatos
Para outros
tempos que hão de vir ainda!
Como o
machucamento das insônias
Te estraga,
quando toda a estuada Idéia
Dás ao
sôfrego estudo da ninféia
E de outras
plantas dicotiledôneas!
A diáfana
água alvíssima e a hórrida áscua
Que da
ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação
molecular da mirra,
o cordeiro
simbólico da Páscoa;
As rebeladas
cóleras que rugem
No homem
civilizado, e a ele se prendem
Como às
pulseiras que os mascates vendem
A aderência
teimosa da ferrugem;
O orbe
feraz que bastos jojos acres
Produz’a
rebelião que na batalha,
Deixa os
homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira
concreta dos massacres;
Os sanguinolentíssimos
chicotes
Da hemorragia;
as nódoas mais espessas,
O achatamento
ignóbil das cabeças,
Que ainda
degrada os povos hotentotes;
O Amor
e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra,
à espera que a mansa vítima o entre,
-- Tudo
que gera no materno ventre
A causa
fisiológica do nojo;
As pálpebras
inchadas na vigília,
As aves
moças que perderam a asa,
O fogão
apagado de uma casa,
Onde morreu
o chefe da família;
O trem
particular que um corpo arrasta
Sinistramente
pela via férrea,
A cristalização
da massa térrea,
O tecido
da roupa que se gasta;
A água
arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega
e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos
e das centopéias,
O fogo-fátuo
que ilumina os ossos;
As projeções
flamívomas que ofuscam,
Como uma
pincelada rembrandtesca,
A sensação
que uma coalhada fresca
Transmite
às mãos nervosas dos que a buscam;
O antagonismo
de Tífon e Osíris,
O homem
grande oprimindo o homem pequeno
A lua falsa
de um parasseleno,
A mentira
meteórica do arco-íris;
Os terremotos
que, abalando os solos,
Lembram
paióis de pólvora explodindo,
A rotação
dos fluidos produzindo
A depressão
geológica dos pólos;
O instinto
de procriar, a ânsia legítima
Da alma,
afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento
dos guerreiros priscos
Metendo
as mãos nas glândulas da vítima;
As diferenciações
que o psicoplasma
Humano
sofre da mania mística,
A pesada
opressão característica
Dos dez
minutos de um acesso de asma;
E, (conquanto
contra isto ódios regougues)
A utilidade
fúnebre da corda
Que arrasta
a rês, depois que a rês engorda,
À morte
desgraçada dos açougues...
Tudo isto
que o terráqueo abismo encerra
Forma a
complicação desse barulho
Travado
entre o dragão do humano orgulho
E as forças
inorgânicas da terra!
Por descobrir
tudo isso, embalde cansas!
Ignoto
é o gérmem dessa força ativa
Que engendra,
em cada célula passiva,
A heterogeneidade
das mudanças!
Poeta,
feito malsão, criado com os sucos
De um leite
mau, carnívoro asqueroso,
Gerado
no atavismo monstruoso
Da alma
desordenada dos malucos;
Última
das criaturasinferiores
Governada
por átomos mesquinhos,
Teu pé
mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza
os ventres geradores!
O áspero
mal que a tudo, em torno, trazes,
Amálogo
é ao que, negro e a seu turno,
Traz o
ávido filóstomo noturno
Ao sangue
dos mamíferos vorazes!
Ah! Por
mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição
dos seres existentes,
Hás de
mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia
horrenda dos detalhes!
O Espaço
-- esta abstração spencereana
Que abrange
as relações de coexistência
E só! Não
tem nenhuma dependência
Com as
vértebras mortais da espécie humana!
As radiantes
elipses que as estrelas
Traçam,
e ao espectador falsas se antolham
São verdades
de luz que os homens olham
Sem poder,
no entretanto, compreendê-las.
Em vão,
com a mão corrupta, outro éter pedes
Que essa
mão, de esqueléticas falanges,
Dentro
dessa água que com a vista abranges,
Também
prova o princípio de Arquimedes!
A fadiga
feroz que te esbordoa
Há de deixar-te
essa medonha marca,
Que, nos
corpos inchados de anasarca,
Deixam
os dedos de qualquer pessoa!
Nem terás
no trabalho que tiveste
A misericordiosa
toalha amiga,
Que afaga
os homens doentes de bexiga
E enxuga,
à noite, as pústulas da peste!
Quando
chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás
arrastado, na carreira,
Como um
cepo inconsciente de madeira
Na evolução
orgânica da argila!
Um dia
comparado com um milênio
Seja, pois,
o teu último Evangelho...
É a evolução
do novo para o velho
E do homogêneo
para o heterogêneo!
Adeus!
Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!...
És poeira e embalde vibras!
O corvo
que comer as tuas fibras
Há de achar
nelas um sabor amargo!”
IV
Calou-se
a voz. A noite era funesta.
E os queixos,
a exibir trismos danados,
Eu puxava
os cabelos desgrenhados
Como o
Rei Lear, no meio da floresta!
Maldizia,
com apóstrofes veementes,
No estentor
de mil línguas insurretas,
O convencionalismo
das Pandetas
E os textos
maus dos códigos recentes!
Minha imaginação
atormentada
Paria absurdos...
Como diabos juntos,
perseguiam-me
os olhos dos defuntos
Com a carne
da esclerótica esverdeada.
Secara
a clorofila das lavouras.
Igual aos
sustenidos de uma endecha
Vinha-me
às cordas glóticas a queixa
Das coletividades
sofredoras.
O mundo
resignava-se invertido
Nas forças
principais do seu trabalho...
A gravidade
era um princípio falho,
A análise
espectral tinha mentido!
O Estado,
a Associação, os Municípios
Eram mortos.
De todo aquele mundo
Restava
um mecanismo moribundo
E uma teleologia
sem princípios.
Eu queria
correr, ir para o inferno,
Para que,
da psique no oculto jogo,
Morressem
sufocadas pelo fogo
Todas as
impressões do mundo externo!
Mas a Terra
negava-me o equilíbrio...
Na Natureza,
uma mulher de luto
Cantava,
espiando as árvores sem fruto.
A canção
prostituta do ludíbrio.
Budismo
moderno
Tome, Dr.,
esta tesoura, e...corte
Minha singularíssima
pessoa.
Que importa
a mim que a bicharia roa
Todo o
meu coração, depois da morte?!
Ah! Um
urubu pousou na minha sorte!
Também,
das diatomáceas da lagoa
A criptógama
cápsula se esbroa
Ao contato
de bronca destra forte!
Dissolva-se,
portanto, minha vida
Igualmente
a uma célula caída
Na aberração
de um óvulo infecundo;
Mas o agregado
abstrato das saudades
Fique batendo
nas perpétuas grades
Do último
verso que eu fizer no mundo!
Sonho de
um monista
Eu e o
esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos,
com uma ânsia sibarita,
por toda
a pro-dinâmica infinita,
Na inconsciência
de um zoófito tranqüilo.
A verdade
espantosa do Protilo
Me aterrava,
mas dentro da alma aflita
Via Deus
-- essa mônada esquisita --
Coordenando
e animando tudo aquilo!
E eu bendizia,
com o esqueleto ao lado,
Na guturalidade
do meu brado,
Alheio
ao velho cálculo dos dias,
Como um
pagão no altar de Proserpina,
A energia
intracósmica divina
Que é o
pai e é a mãe das outras energias!
Solitário
Como um
fantasma que se refugia
Na solidão
da natureza morta,
Por trás
dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui
refugiar-me à tua porta!
Fazia frio
e o frio que fazia
Não era
esse que a carne nos contorta...
Cortava
assim como em carniçaria
O aço das
facas incisivas corta!
Mas tu
não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí,
como quem tudo repele,
-- Velho
caixão a carregar destroços --
Levando
apenas na tumba carcaça
O pergaminho
singular da pele
E o chocalho
fatídico dos ossos!
Mater Originalis
Forma vermicular
desconhecida
Que estacionaste,
mísera e mofina,
Como quase
impalpável gelatina,
Nos estados
prodrômicos da vida;
O hierofante
que leu a minha sina
Ignorante
é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade
indefinida
Que o insigne
Herbert Spencer nos ensina.
Nenhuma
ignota união ou nenhum sexo
À contingência
orgânica do sexo
A tua estacionária
alma prendeu...
Ah! De
ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe
original das outras formas,
A minha
forma lúgubre nasceu!
O Lupanar
Ah! Por
que monstruosíssimo motivo
Prenderam
para sempre, nesta rede,
Dentro
do ângulo diedro da parede,
A alma do homem poilígamo e lascivo?!
Este lugar,
moços do mundo, vede:
É o grande
bebedeouro coletivo,
Onde os
bandalhos, como um gado vivo,
Todas as
noites, Vêm matar a sede!
É o afrodístico
leito do hetairismo
A antecâmara
lúbrica do abismo,
Em que
é mister que o gênero humano entre.
Quando
a promiscuidade aterradora
Matar a
última força geradora
E comer
o último óvulo do ventre!
Idealismo
Falas de
amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor
da Humanidade é uma mentira.
É. E é
por isso que na minha lira
De amores
fúteis poucas vezes falo.
O amor!
Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando,
se o amor quea Humanidade inspira
É o amor
do sibarita e da hetaíra,
De Messalina
e de Sardanapalo?!
Pois é
mister que, para o amor sagrado,
O mundo
fique imaterializado
-- Alavanca
desviada do seu futuro --
E haja
só amizade verdadeira
Duma caveira
para outra caveira,
Do meu
sepulcro para o teu sepulcro?!
Último
credo
Como ama
o homem adúltero o adultério
E o ébrio
a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro
-- este ladrão comum
Que arrasta
a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo
mistério!
É o nous,
é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte,
é esse danado número Um
Que matou
Cristo e que matou Tibério!
Creio,
como o filósofo mais crente,
na generalidade
descrente
Com que
a substância cósmica evolui...
Creio,
perante a evolução imensa,
Que o homem
universal de amanhã vença
O homem
particular eu que ontem fui!
O caixão
fantástico
Célere
ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas,
caixas cranianas, cartilagens
Oriundas,
como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias
abstrações abstrusas!
Nesse caixão
iam, talvez as Musas,
Talvez
meu Pai! Hoffmânicas viagens
Enchiam
meu encéfalo de imagens
As mais
contraditórias e confusas!
A energia
monística do Mundo,
À meia-noite,
penetrava fundo
No meu
fenomenal cérebro cheio...
Era tarde!
Fazia muito frio.
Na rua
apenas o caixão sombrio
Ia continuando
o seu passeio!
Solilóquio
de um visionário
Para desvirginar
o labirinto
Do velho
e metafísico Mistério,
Comi meus
olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia
de faminto!
A digestão
desse manjar funéreo
Tornado
sangue transformou-me o instinto
De humanas
impressões visuais que eu sinto
Nas divinas
visões do íncola etéreo!
Vestido
de hidrogênio incandescente,
Vaguei
um século, improficuamente,
Pelas monotonias
siderais...
subi talvez
às máximas alturas,
Mas, se
hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário
que ainda eu suba mais!
A um carneiro
morto
Misericordiosíssimo
carneiro
Esquartejado,
a maldição de Pio
Décimo
caia em teu algoz sombrio
E em todo
aquele que for seu herdeiro!
Maldito
seja o mercador vadio
Que te
vender as carnes por dinheiro,
pois, tua
lã aquece o mundo inteiro
E guarda
as carnes dos que estão com frio!
Quando
a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro
que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos
-- fontes de perdão -- perdoaram!
Oh! tu
que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses
Deus, no Dia de Juízo,
Talvez
perdoasses os que te mataram!
Vozes da
morte
Agora sim!
Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo
de minha desventura,
Tu, com
o envelhecimento da nervura,
Eu, com
o envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta
noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão,
meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade
de ossatura,
A que nos
acharemos reduzidos!
Não morrerão,
porém, tuas sementes!
E assim,
para o Futuro, em diferentes
Florestas,
vales, selvas, glebas, trilhos,
Na multiplicidade
dos teus ramos,
Pelo muito
que em vida nos amamos,
Depois
da morte, inda teremos filhos!
Insânia
de um simples
Em cismas
patológicas insanas,
É-me grato
adstringir-me, na hierarquia
Das formas
vivas, à categoria
Das organizações
liliputianas;
Ser semelhante
aos zoófitos e às lianas,
Ter o destino
de uma larva fria,
Deixar
enfim na cloaca mais sombria
Este feixe
de células humanas!
E enquanto
arremedando Éolo iracundo,
Na orgia
heliogabálica do mundo,
Ganem todos
os vícios de uma vez,
Apraz-me,
adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta
humilde, apodrecer sozinho
No silêncio
de minha pequenez!
Os doentes
I
Como uma
cascavel que se enroscava,
A cidade
dos lázaros dormia...
Somente,
na metróplole vazia,
Minha cabeça
autônoma pensava!
Mordia-me
a obsessão má de que havia,
Sob os
meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado
doente que sangrava
E uma garganta
órfã que gemia!
Tentava
compreender com as conceptivas
Funções
do encéfalo as substâncias vivas
Que nem
Spencer, nem Haeckel compreenderam...
E via em
mim, coberto de desgraças,
O resultado
de bilhões de raças
Que há
muito desapareceram!
II
Minha angústia
feroz não tinha nome.
Ali, na
urbe natal do Desconsolo,
Eu tinha
de comer o último bolo
Que Deus
fazia para a minha fome!
Convulso,
o vento entoava um pseudosalmo.
Contrastando,
entretanto, com o ar convulso
A noite
funcionava como um pulso
Fisiologicamente
muito calmo.
Caíam sobre
os meus centros nervosos,
Como os
pingos ardentes de cem velas,
O uivo
desenganado das cadelas
E o gemido
dos homens bexigosos.
Pensava!
E em que eu pensava, não perguntes!
Mas, em
cima de um túmulo, um cachorro
Pedia para
mim água e socorro
À comiseração
dos transeuntes!
Bruto,
de errante rio, alto e hórrido, o urro
Reboava.
Além jazia os pés da serra,
Criando
as superstições de minha terra,
A queixada
específica de um burro!
Gordo adubo
de agreste urtiga brava,
Benigna
água, magnânima e magnífica,
Em cuja
álgida unção, branda e beatífica,
A Paraíba
indígena se lava!
A manga,
a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo
E a câmara
odorífera dos sumos
Absorvem
diariamente o ubérrimo húmus
Que Deus
espalha à beira do seu tálamo!
Nos de
teu curso desobstruídos trilhos,
Apenas
eu compreendo, em quaisquer horas,
O hidrogênio
e o oxigênio que tu choras
Pelo falecimento
dos teus filhos!
Ah! Somente
eu compreendo, satisfeito,
A incógnita
psique das massas mortas
Que dormem,
como as ervas, sobre as hortas,
Na esteira
igualitária do teu leito!
O vento
continuava sem cansaço
E enchia
com a fluidez do eólico hissope
Em seu
fantasmagórido galope
A abundância
geométrica do espaço.
Meu ser
estacionava, olhando os campos
Circunjacentes.
No Alto, os astros miúdos
Reduziam
os Céus sérios e rudos
A uma epiderme
cheia de sarampos!
III
Dormia
embaixo, com a promíscua véstia
No enbotamento
crasso dos sentidos,
A comunhão
dos homens reunidos
Pela camaradagem
da moléstia.
Feriam-me
o nervo óptico e a retina
Aponevroses
e tendões de Aquiles,
Restos
repugnantíssimos de bílis,
Vômitos
impregnados de ptialina.
Da degenerescência
étnica do Ária
Se escapava,
entre estrépitos e estouros,
Reboando
pelos séculos vindouros,
O ruído
de uma tosse hereditária.
OH! desespero
das pessoas tísicas,
Adivinhando
o frio que há nas lousas,
Maior felicidade
é a destas cousas
Submetidas
apenas às leis físicas!
Estas,
por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos
brutos, dores não recebem;
Estas dis
bacalhaus o óleo não bebem,
Estas não
cospem sangue, estas não tossem!
Descender
dos macacos catarríneos,
Cair doente
e passar a vida inteira
Com a boca
junto de uma escarradeira,
Pintando
o chão de coágulos sangüíneos!
Sentir,
adstritos ao quimiotropismo
Erótico,
os micróbios assanhados
Passearem,
como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades
do organismo!
Falar somente
uma linguagem rouca.
Um português
cansado e incompreensível,
Vomitar
o pulmão na noite horrível
Em que
se deita sangue pela boca!
Expulsar,
aos bocados, a existência
Numa bacia
autômata de barro,
Alucinado,
vendo em cada escarro
O retrato
da própria consciência!
Querer
dizer a angústia de que é pábulo
E com a
respiração já muito fraca
Sentir
como que a ponta de uma faca,
Cortanto
as raízes do último vocábulo.
Não haver
terapêutica que arranque
Tanta opressão
como se, com efeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina
pneumática de Bianchi!
E o ar
fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer,
como um cronômetro gigante
Marcando
a transição emocionante
Do lar
materno para a catacumba!
Mas vos
não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
Consagrando
vossa última fonética
A uma recitação
de mesereres.
Antes levardes
ainda uma quimera
Para a
garganta omnívora das lajes
Do que
morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra
a dissolução que vos espera!
Porque
a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante
a minha concepção vesânica,
É a alfândega,
onde toda a vida orgânica
Há de pagar
um dia o último imposto!
IV
Começara
a chover. Pelas algentes
Ruas, a
água, em cachoeiras desobstruídas
Encharcava
os buracos das feridas,
Alagava
a medula dos Doentes!
Do fundo
do meu trágico destino,
Onde a
Resignação os braços cruza,
Saía, com
o vexame de uma fusa,
A mágoa
gaguejada de um cretino.
Aquele
ruído obscuro de gagueira
Que à noite,
em sonhos mórbidos, me acorda,
Vinha da
vibração bruta da corda
Mais recôndita
da alma brasileira!
Aturdia-me
a tétrica miragem
De que,
naquele instante, no Amazonas,
Fedia,
entregue a vísceras glutonas,
A carcaça
esquecida de um selvagem.
A civilização
entrou na taba
Em que
ele estava. O gênio de Colombo
Manchou
de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu
na cova do morubixaba!
E o índio,
por fim, adstrito à étnica escória,
Recebeu,
tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento
do progresso
Que o anulava
na crítica da História!
Como quem
analisa uma apostema,
De repente,
acordando na desgraça,
Viu toda
a podridão de sua raça...
Na tumba
de Iracema!...
Ah! Tudo,
como um lúgubre ciclone,
Exercia
sobre ela ação funesta
Desde o
desbravamento da floresta
à ultrajante
invenção do telefone.
E sentia-se
pior que um vagabundo
Microcéfalo
vil que a espécie encerra,
Desterrado
na sua própria terra,
Diminuído
na crônica do mundo!
A hereditariedade
dessa pecha
Seguiria
seus filhos. Dora em diante
Seu povo
tombaria agonizante
Na luta
da espingarda contra a flecha!
Veio-lhe
então como à fêmea vêm antojos.
Uma desesperada
ânsia improfícua
De estrangular
aquela gente iníqua
Que progredia
sobre os seus despojos!
Mas, diante
a xantocróide raça loura,
Jazem,
caladas, todas as inúbias,
E agora,
sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma
clarividência aterradora,
Em vez
da prisca tribo e indiana tropa
A gente
deste século, espantada,
Vê somente
a caveira abandonada
De uma
raça esmagada pela Europa!
V
Era a hora
em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas
hamléticos dispersos
Atiram
na consciência dos perversos
A sombra
dos remorsos famulentos.
As mães
sem coração rogavam pragas
Aos filhos
bons. E eu, roído pelos medos,
Batia com
o pentágono dos dedos
Sobre um
fundo hipotético de chagas!
Diabólica
dinâmica daninha
Oprimia
meu cérebro indefeso
Com a força
onerosíssima de um peso
Que eu
não sabia mesmo de onde vinha.
Perfurava-me
o peito a áspera pua
do desânimo
negro que me prostra,
E quase
a todos os momentos mostra
Minha caveira
aos bêbedos da rua.
Hereditariedades
politípicas
Punham
na minha boca putrescível
Interjeições
de abracadabra horrível
E os verbos
indignados das Filípicas.
Todos os
vocativos dos blasfemos,
No horror
daquela noite monstruosa,
Maldiziam,
com voz estentorosa,
A peçonha
inicial de onde nascemos.
Como que
havia na ânsia de conforto
De cada
ser, ex.: o homem e o ofídio,
Uma necessidade
de suicídio
E um desejo
incoercível de ser morto!
Naquela
angústia absurda e tragicômica
Eu chorava,
rolando sobre o lixo,
Com a contorção
neurótica de um bicho
Que ingeriu
30 gramas de noz-vômica.
E, como
um homem doido que se enforca,
Tentava,
na terráquea superfície,
Consubstanciar-me
todo com a imundície,
Confundir-me
com aquela coisa porca!
Vinha,
às vezes, porém, o anelo instável
De, com
o auxílio especial do osso masséter
Mastigando
homeomérias neutras de éter
Nutrir-me
da matéria imponderável.
Anelava
ficar um dia, em suma,
Menor que
o anfióxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação
de espécie alguma.
Era (nem
sei em síntese o que diga)
Um velhíssimo
instinto atávico, era
A saudade
inconsciente da monera
Que havia
sido minha mãe antiga.
Com o horror
tradicional da raiva corsa
Minha vontade
era, perante a cova,
Arrancar
do meu próprio corpo a prova
Da persistência
trágica da força.
A pragmática
má de humanos usos
Não compreende
que a Morte que não dorme
É a absorção
do movimento enorme
Na dispersão
dos átomos difusos.
Não me
incomoda esse último abandono
Se a carne
individual hoje apodrece
Amanhã,
como Cristo, reaparece
Na universalidadej
do c arbono!
A vida
vem do éter que se condensa
Mas o que
mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera
microscópica do plasma
Fazer a
luz do cérebro que pensa.
Eu voltarei,
cansado, da árdua liça
À substância
inorgânica primeva
De onde,
por epigênese, veio Eva
E a stirpe
radiolar chamada Actissa.
Quando
eu for misturar-me com as violetas
Minha lira,
maior que a Bíblia e a Fedra
Reviverá,
dando emoção à pedra
Na acústica
de todos os planetas!
VI
À álgida
agulha, agora, alva, a saraiva
Caindo,
análoga era... Um cão agora
Punha a
atra língua hidrófoba de fora
Em contrações
miológicas de raiva.
Mas, para
além, entre oscilantes chamas,
Acordavam
os bairros da luxúria...
As prostitutas,
doentes de hematúria,
Se extenuavam
nas camas.
Uma, ignóbil,
derreada de cansaço,
Quase que
escangalhada pelo vício,
Cheirava
com prazer no sacrifício
A lepra
má que lhe roía o braço!
E ensangüentava
os dedos da mão nívea
Com o sentimento
gasto e a emoção pobre,
Nessa alegria
bárbara que cobre
Os saracoteamentos
da lascívia...
De certo,
a perversão de que era presa
o sensorium
daquela prostituta
Vinha da
adaptação quase absoluta
À ambiência
microbiana da baixeza!
Entanto,
virgem fostes, e, quando o éreis,
Não tínheis
ainda essa erupção cutânea,
Nem tínheis,
vítima última da insânia,
Duas mamárias
glândulas estéreis!
Ah! Certamente
não havia ainda
Rompido,
com violência, no horizonte,
O sol malvado
que secou a fonte
De vossa
castidade agora finda!
Talvez
tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes
ao mundo, até que, à-toa,
Fostes
vender a virginal coroa
Ao primeiro
bandido do arrabalde.
E estais
velha! -- De vós o mundo é farto,
E hoje,
que a sociedade vos enxota,
Somente
as bruxas negras da derrota
Freqüentam
diariamente vosso quarto!
prometem-vos
(quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe da
mancebia dos alcouces,
Nas quietudes
nirvânicas mais doces
O noivado
que em vida não tivestes!
VII
Quase todos
os lutos conjugados,
Como uma
associação de monopólio,
Lançavam
pinceladas pretas de óleo
Na arquitetura
arcaica dos sobrados.
Dentro
da noite funda um braço humano
Parecia
cavar ao longe um poço
Para enterrar
minha ilusão de moço,
Como a
boca de um poço artesiano!
Atabalhoadamente
pelos becos,
Eu pensava
nas coisas que perecem,
Desde as
musculaturas que apodrecem
À ruína
vegetal dos lírios secos.
Cismava
no propósito funéreo
Da mosca
debochada que fareja
O defunto,
no chão frio da igreja,
E vai depois
levá-lo ao cemitério!
E esfregando
as mãos magras, eu, inquieto,
Sentia,
na craniana caixa tosca,
A racionalidade
dessa mosca,
A consciência
terrível desse inseto!
Regougando,
porém, argots e aljâmias,
Como quem
nada encontra que o perturbe,
A energúmena
gei dos ébrios da urbe
Festejava
seu sábado de infâmias.
A estática
fatal das paixões cegas,
Rugindo
fundamente nos neurônios,
Puxava
aquele povo de demônios
Para a
promiscuidade das adegas.
E a ébria
turba que escaras sujas masca,
À falta
idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia
com gáudio absinto, lúpulo
E outras
substâncias tóxicas da tasca.
O ar ambiente
cheirava a ácido acético,
Mas, de
repente, com o ar de quem empesta,
Apareceu,
escorraçando a festa,
A mandíbula
inchada de um morfético!
Saliências
polimórficas vermelhas,
Em cujo
aspecto o olhar perspícuo prendo,
Punham-lhe
num destaque horrendo o horrendo
Tamanho
aberratório das orelhas.
O fácies
do morfético assombrava!
-- Aquilo
era uma negra eucaristia,
Onde minh’alma
inteira surpreendia
A Humanidade
que se lamentava!
Era todo
o meu sonho, assim inchado,
Já podre,
que a morféia miserável
Tornava
às impressões táteis, palpável,
Como se
fosse um corpo organizado!
VIII
Em torno
a mim, nesta hora, estriges voam,
E o cemitério,
em que eu entrei adrede,
Dá-me a
impressão de um boulevard que fede,
Pela degradação
dos que o povoam.
Quanta
gente, roubada à humana coorte
Morre de
fome, sobre a palha espessa,
Sem ter,
como Ugolino, uma cabeça
Que possa
mastigar na hora da morte
E nua,
após baixar ao caos budista,
Vem para
aqui, nos braços de um canalha
porque
o madapolão para a mortalha
Custa 1$200
ao lojista!
Que resta
das cabeças que pensaram?!
E afundado
nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar
num milhão de miolos gastos,
Todos os
meus cabelos se arrepiaram.
Os evolucionistas
benfeitores
Que por
entre os cadáveres caminham,
iguais
a irmãs de caridade, vinham
Com a podridão
dar de comer às flores!
Os defuntos
então me ofereciam
Com as
articulações das mãos inermes,
Num prato
de hospital, cheio de vermes,
Todos os
animais que apodreciam!
É possível
que o estômago se afoite
(Muito
embora contra isto a alma se irrite)
A cevar
o antropófago apetite,
Comendo
carne humana, à meia-noite!
Com uma
ilimitadíssima tristeza,
Na impaciência
do estômago vazio,
Eu devorava
aquele bolo frio
Feito das
podridões da Natureza!
E hirto,
a camisa suada, a alma aos arrancos,
Vendo passar
com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas
figuras
Das negras
desonradas pelos brancos;
Pisando,
como quem salta, entre fardos,
Nos corpos
nus das moças hotentotes
Entregues,
ao clarão de alguns archotes,
À sodomia
indigna dos moscardos;
Eu maldizia
o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo
a igualitária regra
Da Natureza,
atira a raça negra
Ao contubérnio
diário das quitandas!
Na evolução
de minha dor grotesca,
Eu mendigava
aos vermes insubmissos
Como indenização
dos meus serviços,
O benefício
de uma cova fresca.
Manhã.
E eis-me a absorver a luz de fora,
Como o
íncola do pólo ártico, às vezes,
Absorve,
após a noite de seis meses,
Os raios
caloríficos da aurora.
Nunca mais
as goteiras cairiam
Como propositais
setas malvadas,
No frio
matador das madrugadas,
Por sobre
o coração dos que sofriam!
Do meu
cérebro à absconsa tábua rasa
Vinha a
luz restituir o antigo crédito,
Proporcionando-me
o prazer inédito,
De quem
possui um sol dentro de casa.
Era a volúpia
fúnebre que os ossos
Me inspiravam,
trazendo-me ao sol claro,
À apreensão
fisiológica do faro
O odor
cadaveroso dos destroços!
IX
O inventário
do que eu já tinha sido
Espantava.
Restavam só de Augusto
A forma
de um mamífero vetusto
E a cerebralidade
de um vencido!
O gênio
procriador da espécie eterna
Que me
fizera, em vez de hiena ou lagarta,
Uma sobrevivência
de Sidarta,
Dentro
da filogênese moderna;
E arrancara
milhares de existências
Do ovário
ignóbil de uma fauna imunda,
Ia arrastando
agora a alma infecunda
Na mais
triste de todas as falências.
No céu
calamitoso de vingança
Desagregava,
déspota e sem normas,
O adesionismo
biôntico das formas
Multiplicadas
pela lei da herança!
A ruína
vinha horrenda e deletéria
Do subsolo
infeliz, vinha de dentro
Da matéria
em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar
depois a periferia!
Contra
a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a
meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham
aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se
desde os alicerces!
A doença
era geral, tudo a extenuar-se
Estava.
O Espaço abstrato que não morre
Cansara...
O ar que, em colônias fluídas, corre,
Parecia
também desagregar-se!
O prodromos
de um tétano medonho
Repuxavam-me
o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia
nascer-me n’alma, entanto,
O começo
magnífico de um sonho!
Entre as
formas decrépitas do povo,
Já batiam
por cima dos estragos
A sensação
e os movimentos vagos
Da célula
inicial de um Cosmos novo!
O letargo
larvário da cidade
Crescia.
Igual a um parto, numa furna,
Vinha da
original treva noturna,
o vagido
de uma outra Humanidade!
E eu, com
os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava,
com um prazer secreto,
A gestação
daquele grande feto,
Que vinha
substituir a Espécie Humana!
Asa de
corvo
Asa de
corvos carniceiros, asa
De mau
agouro que, nos doze meses,
Cobre às
vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado
de nossa própria casa...
Perseguido
por todos os reveses,
É meu destino
viver junto a esa asa,
Como a
cinza que vive junto à brasa,
Como os
Goncourts, como os irmãos siameses!
É com essa
asa que eu faço este soneto
E a indústria
humana faz o pano preto
Que as
famílias de luto martiriza...
É ainda
com essa asa extraordinária
Que a Morte
-- a costureira funerária --
Cose para
o homem a última camisa!
Uma noite
no Cairo
Noite no
Egito. O céu claro e produndo
Fulgura.
A rua é triste. A Lua cheia
Está sinistra,
e sobre a paz do mundo
A alma
dos Faraós anda e vagueia.
Os mastins
negros vão ladrando à lua...
O Cairo
é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando
uma mulher hebraica.
O Egito
é sempre assim quando anoitece!
Às vezes,
das pirâmides o quedo
E atro
perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria
interjeição de medo!
Como um
contraste àqueles mesereres,
Num quiosque
em festa alegre turba grita,
E dentro
dançam homens e mulheres
Numa aglomeração
cosmopolita.
Tonto do
vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso
e roto, no apogeu da fúria,
Executando
evoluções de razzia
Solta um
brado epilético de injúria!
Em derredor
duma ampla mesa preta
-- Última
nota do conúbio infando --
Vêem-se
dez jogadores de roleta
Fumando,
discutindo, conversando.
Resplandece
a celeste superfície.
Dorme soturna
a natureza sábia...
Embaixo,
na mais próxima planície,
Pasta um
cavalo esplêndido da Arábia.
Vaga no
espaço um silfo solitário.
Troam kinnors!
Depois tudo é tranqüilo...
Apenas
como um velho stradivário,
Soluça
toda a noite a água do Nilo!
O Martírio
do artista
Arte ingrata!
E conquanto, em desalento,
A órbita
elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar
o pensamento
Que em
suas fronetais células guarda!
Tarda-lhe
a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo
a tremer, rasga o papel, violento,
Como o
soldado que rasgou a farda
No desespero
do último momento!
Tenta chorar
e os olhos sente enxutos!...
É como
o paralítico que, à míngua
Da própria
voz e na que ardente o lavra
Febre de
em vão falar, com os dedos brutos
Para falar,
puxa e repuxa a língua,
E não lhe
vem à boca uma palavra!
Duas estrofes
(À memória
de João de Deus)
Ahi! ciechi!
il tanto affaticar che giova?
Tutti
torniamo alla gran madre antica
E il nostro
nome appena si ritrova.
Petrarca
A queda
do teu lírico arrabil
De um sentimento
português ignoto
Lembra
Lisboa, bela como um brinco,
Que um
dia no ano trágico de mil
E setecentos
e cinqüenta e cinco,
Foi abalada
por um terremoto!
A água
quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas
toda essa Lisboa
De glórias
quase sobrenaturais,
Apenas
com uma diferença triste,
Com a diferença
que Lisboa existe
E tu, amigo,
não existes mais!
O MAR,
A ESCADA E O HOMEM
“Olha agora,
mamífero inferior,
“À luz
da espicurista ataraxia,
“O fracasso
de tua geografia
“E do teu
escafandro esmiuçador!
“Ah! Jamais
saberás ser superior,
“Homem,
a mim, conquanto ainda hoje em dia,
“Com a
ampla hélice auxiliar com que outrora ia
“Voando
ao vento o vastíssimo vapor.
“Rasgue
a água hórrida a nau árdega e singre-me!”
E a verticalidade
da Escada íngreme:
“Homem,
já transpuseste os meus degraus?!”
E Augusto,
o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo
a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio
aterrador do Caos!
Decadência
Iguais
às linhas perpendiculares
Caíram,
como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas
33 vértebras gastas
Quase todas
as pedras tumulares!
A frialdade
dos círculos polares,
Em sucessivas
atuações nefastas,
Penetrara-lhe
os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe
os centros medulares!
Como quem
quebra o objeto mais querido
E começa
a apanhar piedosamente
Todas as
microscópicas partículas,
Ele hoje
vê que, após tudo perdido,
Só lhe
restam agora o último doente
E a armação
funerária das clavículas!
Ricordanza
della mia gioventú
A minha
ama-de-leite Guilhermina
Furtava
as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha,
minha Mãe, ralhava...
Via naquilo
a minha própria ruína!
Minha ama,
então, hipócrita, afetava
Susceptibilidade
de menina:
“-- Não,
não fora ela! --“ E maldizia a sina,
Que ela
absolutamente não furtava.
Vejo, entretanto,
agora, em minha cama,
Que a mim
somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste
a moeda, o ouro que brilha.
Furtaste
a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei
mais, porque furtei o peito
Que dava
leite para a tua filha!
A um mascarado
Rasga essa
máscara ótima de seda
E atira-a
à arca ancestral dos palimpsestos...
É noite,
e, à noite, a escândalos e incestos
É natural
que o instinto humano aceda!
Sem que
te arranquem da garganta queda
A interjeição
danada dos protestos,
Hás de
engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida
horrivelmente azeda!
A sucessão
de hebdômadas medonhas
Reduzirá
os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos
do ovo primitivo...
E tu mesmo,
após a árdua e atra refrega,
Terás somente
uma vontade cega
E uma tendência
obscura de ser vivo!
Vozes de
um túmulo
Morri!
E a Terra -- a mãe comum -- o brilho
Destes
meus olhos apagou!... Assim
Tântalo,
aos reais convivas, num festim,
Serviu
as carnes do seu próprio filho!
Por que
para este cemitério vim?!
Por que?!
Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse,
do que este que palmilho
E que me
assombra, porque não tem fim!
No ardor
do sonho que o fronema exalta
Construí
de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém,
que se desmoronou
A pirâmide
real do meu orgulho,
Hoje que
apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência
de que nada sou!
Contrastes
A antítese
do novo e do obsoleto,
O Amor
e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o
homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém
para o homem ser completo!
O ângulo
obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição
humana e outra divina
São como
a eximenina e a endimenina
Que servem
ambas para o mesmo feto!
Eu sei
tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição
destes contrastes,
Junta-se
um hemisfério a outro hemisfério,
Às alegrias
juntam-se as tristezas,
E o carpinteiroque
fabrica as mesas
Faz também
os caixões do cemitério!...
Gemidos
de arte
I
Esta desilusão
que me acabrunha
É mais
traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa
disto, eu vivo pelos matos,
Magro,
roendo a substância córnea de unha.
Tenho estremecimentos
indecisos
E sinto,
haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo
assombro que sentiu Parfeno
Quando
arrancou os olhos de Dionisos!
Em giro
e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas
mágoas estranguladoras,
Tais quais,
nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas,
também gira e redemoinham.
Os pães
-- filhos legítimos dos trigos --
Nutrem
a geração do Ódio e da Guerra.
Os cachorros
anônimos da terra
São talvez
os meus únicos amigos!
Ah! Por
que desgraçada contingência
À híspida
aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha
brava, numa ininterrupta
Adesão,
não prendi minha existência?!
Por que
Jeová, maior do que Laplace,
Não fez
cair o túmulo de Plínio
Por sobre
todo o meu raciocínio
Para que
eu nunca mais raciocinase?!
Pois minha
Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos,
com que guarda meus sapatos,
Por que
me deu consciência dos meus atos
Para eu
me arrepender de todos eles?!
Quisera
antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor
ser do Pau d’Arco,
Beber a
acre e estagnada água do charco,
Dormir
na manjedoura com os cavalos!
Mas a carne
é que é humana! A alma é divina.
Dorme num
leito de feridas, goza
O lodo,
apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a
peçonha, e não se contamina!
Ser homem!
escapar de ser aborto!
Sair de
um vente inchado que se anoja,
Comprar
vestidos pretos numa loja
E andar
de luto pelo pai que é morto!
E por trezentos
e sessenta dias
Trabalhar
e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se
dos irmãos defuntos,
Chupar
os ossos das alimarias!
Barulho
de mandíbulas e abdômens!
E vem-me
com um desprezao por tudo isto
Uma vontade
absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me
pelos homens!
Soberano
desejo! Soberana
Ambição
de construir para o homem uma
Região,
onde não cuspa língua alguma
O óleo
rançoso da saliva humana!
Uma região
sem nódoas e sem lixos,
Subtraída
à hediondez de ínfimo casco,
Onde a
forca feroz coma o carrasco
E o olho
do estuprador se encha de bichos!
Outras
constelações e outros espaços
Em que,
no agudo grau da última crise,
O braço
do ladrão se paralise
E a mão
da meretriz caia aos pedaços!
II
O sol agora
é de um fulgor compacto,
E eu vou
andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade
de um molusco,
Úmido,
pegajoso e untuoso ao tacto!
Reúnam-se
em rebelião ardente e acesa
Todas as
minhas forças emotivas
E armem
ciladas como cobras vivas
Para despedaçar
minha tristeza!
O sol de
cima espiando a flora moça
Arda, fustigue,
queime, corte, morda!...
Deleito
a vista na verdura gorda
Que nas
hastes delgadas se balouça!
Avisto
o vulto das sombrias granjas
Perdidas
no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras
eu admiro os cachos
E a ampla
circunferência das laranjas.
Ladra furiosa
a tribo dos podengos.
Olhando
para as pútridas charnecas
Grita o
exército avulso das marrecas
Na úmida
copa dos bambus verdoengos.
Um pássaro
alvo artífice da teia
De um ninho,
salta, no árdego trabalho,
De árvore
em árvore e de galho em galho,
Com a rapidez
duma semicolcheia.
Em grandes
semicírculos aduncos,
Entrançados,
pelo ar, largando pêlos,
Voam à
semelhan ça de cabelos
Os chicotes
finíssimos dos juncos.
Os ventos
vagabundos batem, bolem
Nas árvores.
O ar cheira. A terra cheira...
E a alma
dos vegetais rebenta inteira
De todos
os corpúsculos do pólen.
A câmara
nupcial de cada ovário
Se abre.
No chão coleia a lagartixa.
Por toda
a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento
involuntário.
Eu, depois
de morrer, depois de tanta
Tristeza,
quero, em vez do nome -- Augusto,
Possuir
aí o nome dum arbusto
Qualquer
ou de qualquer obscura planta!
III
Pelo acidentalíssimo
caminho
Faísca
o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os
bois. O céu lembra uma lauda
Do mais
incorruptível pergaminho.
Uma atmosfera
má de incômoda hulha
Abafa o
ambiente. O aziago ar morto a morte
Fede. O
ardente calor da areia forte
Racha-me
os pés como se fosse agulha.
Não sei
que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros
e por cem côncavos vales,
Como pela
avenida das Mappales,
Me arrasta
à casa do finado Toca!
Todas as
tardes a esta casa venho.
Aqui, outrora,
sem conchego nobre,
Viveu,
sentiu e amou este homem pobre
Que carregava
canas para o engenho!
Nos outros
tempos e nas outras eras,
Quantas
flores! Agora, em vez de flores,
Os musgos, como exóticos pintores,
Pintam
caretas verdes nas taperas.
Na bruta
dispersão de vítreos cacos,
À dura
luz do sol resplandecente,
Trôpega
e antiga, uma parede doente
Mostra
a cara medonha dos buracos.
O cupim
negro broca o âmago fino
Do teto.
E traça trombas de elefantes
Com as
circunvoluções extravagantes
Do seu
complicadíssimo intestino.
O lodo
obscuro trepa-se nas portas.
Amontoadas
em grossos feixes rijos,
As lagartixas,
dos esconderijos,
Estão olhando
aquelas coisas mortas!
Fico a
pensar no Espírito disperso
Que, unindo
a pedra ao gneiss e a árvore à criança,
Como um
anel enorme de aliança,
Une todas
as coisas do Universo!
E assim
pensando, com a cabeça em brasas
Ante a
fatalidade que me oprime,
Julgo ver
este Espírito sublime,
Chamando-me
do sol com as suas asas!
Gosto do
sol ignívomo e iracundo
Como o
réptil gosta quando se molha
E na atra
escuridão dos ares, olha
Melancolicamente
para o mundo!
Essa alegria
imaterializada,
Que por
vezes me absorve, é o óbolo obscuro,
É o pedaço
já podre de pão duro
Que o miserável
recebeu na estrada!
Não são
os cinco mil milhões de francos
Que a Alemanha
pediu a Jules Favre...
É o dinheiro
coberto de azinhavre
Que o escravo
ganha, trabalhando aos brancos!
Seja este
sol meu último consolo;
E o espírito
infeliz que em mim se encarna
Se alegre
ao sol, como quem raspa a sarna,
Só, com
a misericórdia de um tijolo!...
Tudo enfim
a mesma órbita percorre
E as bocas
vão beber o mesmo leite...
A lamparina
quando falta o azeite
Morre,
da mesma forma que o homem morre.
Súbito,
arrebentando a horrenda calma,
Grito,
e se gritio é para que meu grito
Seja a
revelação deste Infiniti
Que eu
trago encarcerado da minh’alma!
Sol brasileiro!
queima-me os destroços!
Quero assistir,
aqui, sem pai que me ame,
De pé,
à luz da consciência infame,
À carbonização
dos próprios ossos!
Versos
de amor
A um poeta
erótico
Parece
muito doce aquela cana.
Descasco-a,
provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor,
poeta, é como a cana azeda,
A toda
a boca que o não prova engana.
Quis saber
que era o amor, por experiência,
E hoje
que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera
eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as
ciências menos esta ciência!
Certo,
este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo,
o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto
a mim. Por conseguinte
Chamas
amor aquilo que eu não chamo.
Oposto
ideal ao meu ideal conservas.
Diverso
é, pois, o ponto outro de vista
Consoante
o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de
ver, consoante o qual, o observas.
Porque
o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito,
é éter, é substância fluida,
É assim
como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida,
entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação
de instintos rudes,
Imponderabilíssima
e impalpável,
Que anda
acima da carne miserável
Como anda
a garça acima dos açudes!
Para reproduzir
tal sentimento
Daqui por
diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias
-- o inventor da flauta --
Vou inventar
também outro instrumento!
Mas de
tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono,
que o idioma em que te eu falo
Possam
todas as línguas decliná-lo
Possam
todos os homens compreendê-lo.
Para que,
enfim, chegando à última calma
Meu podre
coração roto não role,
Integralmente
desfibrado e mole,
Como um
saco vazio dentro d’alma!
Sonetos
I
A meu pai
doente
Para onde
fores, Pai, para onde fores,
Irei também,
trilhando as mesmas ruas...
Tu, para
amenizar as dores tuas,
Eu, para
amenizar as minhas dores!
Que coisa
triste! O campo tão sem flores,
E eu tão
sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo,
e o horror de nossas duas
Mágoas
crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te,
meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente
aos mil tormentos teus
De assim
magoar-te sem pesar havia?!
-- Seria
a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom,
é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não
havia de magoar-te assim!
II
A meu pai
morto
Madrugada
de Treze de Janeiro,
Rezo, sonhando,
o ofício da agonia.
Meu Pai
nessa hora junto a mim morria
Sem um
gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem
lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando
acordei, cuidei que ele dormia,
E disse
à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”!
deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para
ver a Natureza!
Em tudo
o mesmo abismo de beleza,
Nem uma
névoa no estrelado véu...
Mas pareceu-me,
entre as estrelas flóreas,
Como Elias,
num carro azul de glórias,
Ver a alma
de meu Pai subindo ao Céu!
III
Podre meu
Pai! A morte o olhar lhe vidra.
Em seus
lábios que os meus lábios osculam
Microrganismos
fúnebres pululam
Numa fermentação
gorda de cidra.
Duras leis
as que os homens e a hórrida hidra
A uma só
lei biológica vinculam,
E a marcha
das moléculas regulam,
Com a invariabilidade
da clepsidra!
Podre meu
Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda
de bichos, como os queijos
Sobre a
mesa de orgíacos festins!...
Amo meu
Pai na atômica desordem
Entre as
bocas necrófagas que o mordem
E a terra
infecta que lhe cobre os rins!
Depois
da orgia
O prazer
que na orgia a hetaíra goza
Produz
no meu sensorium de bacante
O efeito
de uma túnica brilhante
Cobrindo
ampla apostema escrofulosa!
Troveja!
E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema
nervoso de um gigante
Para sofrer
na minha carne estuante
A dor da
força cósmica furiosa.
Apraz-me,
enfim, despindo a última alfaia
Que ao
comércio dos homens me traz presa,
Livre deste
cadeado de peçonha,
Semelhante
a um cachorro de atalaia
Às decomposições
da Natureza,
Ficar latindo
minha dor medonha!
A Árvore
da serra
-- As árvores,
meu filho, não têm alma!
E esta
árvore me serve de empecilho...
É preciso
cortá-la, pois, meu filho,
Para que
eu tenha uma velhice calma!
-- Meu
pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê
que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs
almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore,
meu pai, possui minh’alma!...
-- Disse
-- e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate
a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando
a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos
golpes do machado bronco,
O moço
triste se abraçou com o tronco
E nunca
mais se levantou da terra!
Vencido
No auge
de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo,
desde o mais prístino mito,
por exemplo:
o do boi Ápis do Egito
Ao velho
Niebelungen da Alemanha.
Acometido
de uma febre estranha
Sem o escândalo
fônico de um grito,
mergulhou
a cabeça no Infinito,
Arrancou
os cabelos na montanha!
Desceu
depois à gleba mais bastarda,
Pondo a
áurea insígnia heráldica da farda
À vontade
do vômito plebeu...
E ao vir-lhe
o cuspo diário à boca fria
O vencido
pensava que cuspia
Na célula
infeliz de onde nasceu.
O Corrupião
Escaveirado
corrupião idiota,
Olha a
atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga
criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do
fundo do chão todo o ano brota!
Mas a ânsia
de alto voar, de à antiga rota
Voar, não
tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te
a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada
da última derrota!
A gaiola
aboliu tua vontade.
Tu nunca
mais verás a liberdade!...
Ah! Tu
somente ainda és igual a mim.
Continua
a comer teu milho alpiste.
Foi este
mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola
que te pôs assim!
Noite de
um visionário
Número
cento e três. Rua Direita.
Eu tinha
a sensação de quem se esfola
E inopinadamente
o corpo atola
Numa poça
de carne liquefeita!
-- “Que
esta alucinação tátil não cresça!”
-- Dizia;
e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,
Com a rebeldia
acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima
cabeça.
É a potencialidade
que me eleva
Ao grande
Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma
-- este sombrio personagem
Do drama
panteístico da treva!
Depois
de dezesseis anos de estudo
Generalizações
grandes e ousadas
Traziam
minhas forças concentradas
Na compreensão
monística de tudo.
Mas a aguadilha
pútrida o ombro inerme
Me aspergia,
banhava minhas tíbias,
E a ela
se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortanto
o melanismo da epiderme.
Arimânico
gênio destrutivo
Desconjuntava
minha autônoma alma
Esbandalhando
essa unidade calma,
Que forma
a coerência do ser vivo.
E eu sí
a tremer com a língua grossa
E a volição
no cúmulo do exício,
Como quem
é levado para o hospício
Aos trambolhões,
num canto de carro;ca!
Perante
o inexorável céu aceso
Agregações
abióticas espúrias,
Como um
cara, recebendo injúrias,
Recebiam
os cuspos do desprezo.
A essa
hora, nas telúrias reservas,
O reino
mineral americano
Dormia,
sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha
minúscula das ervas.
E não haver
quem, íntegra, lhe entregue,
Com os
ligamentos glóticos precisos,
A liberdade
de vingar em risos
A angústia
milenária que o persegue!
Bolia nos
obscuros labirintos
Da fértil
terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima
fauna abscôndita e grotesca
Da família
bastarda dos helmintos.
As vegetalidades
subalternas
Que osserenos
noturnos orvalhavam,
Pela alta
frieza intrínseca, lembravam
Toalhas
molhadas sobre as minhas pernas.
E no estrume
fresquíssimo da gleba
Formigavam,
com a símplice sarcode,
O vibrião,
o ancilóstomo, o colpode
E outros
irmãos legítimso da ameba!
E todas
essas formas que Deus lança
No Cosmos,
me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço
de língua disponível
Para a
filogenética vingança!
A cidade
exalava um podre béfio:
Os anúncios
das casas de comércio,
Mais tristes
que as elegais de Propércio,
Pareciam
talvez meu epitáfio.
O motor
teleológico da Vida
Parara!
Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do
coração quente da terra
Um rumor
de matéria dissolvida.
A química
feroz do cemitério
Transformava
porções de átomos juntos
No óleo
malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância
de um geyser deletério.
Dedos denunciadores
escreviam
Na lúgubre
extensão da rua preta
Todo o
destino negro do planeta,
Onde minhas
moléculas sofriam.
Um necrófilo
mau forçava as lousas
E eu --
coetâneo do horrendo cataclismo --
Era puxado
para aquele abismo
No redemoinho
universal das cousas!
Alucinação
à beira-mar
Um medo
de morrer meus pés esfriava.
Noite alta.
Ante o telúrico recorte,
na diuturna
discórdia, a equórea coorte
Atordoadamente
ribombava!
Eu, ególatra
céptico, cismava
Em meu
destino!... O vento estava forte
E aquela
matemárica da Morte
Com os
seus números negros, me assombrava!
Mas a alga
usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios
subraquianos
Que um
castigo de espécie emudeceu,
No eterno
horror das convulsões marítimas
Pareciam
também corpos de vítimas
Condenados
à Morte, assim como eu!
Vandalismo
Meu coração
tem catedrais imensas,
Templos
de priscas e longínquas datas,
Onde um
nume de amor, em serenatas,
Canta a
aleluia virginal das crenças.
Na ogiva
fúlgida e nas colunatas
Vertem
lustrais irradiações intensas
Cintilações
de lâmpadas suspensas
E as ametistas
e os florões e as pratas.
Com os
velhos Templários medievais
Entrei
um dia nessas catedrais
E nesses
templos claros e risonhos...
E erguendo
os gládios e brandindo as hastas,
No desespero
dos iconoclastas
Quebrei
a imagem dos meus próprios sonhos!
Versos
íntimos
Vês! Ninguém
assistiu ao formidável
Enterro
de tua última quimera.
Somente
a Ingratidão -- esta pantera --
Foi tua
companheira inseparável!
Acostuma-te
à lama que te espera!
O Homem,
que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente invevitável
Necessidade
de também ser fera.
Toma um
fósforo. Acende teu cigarro!
o beijo,
amigo, é a véspera do escarro,
A mão que
afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém
causa inda pena a tua chaga,
Apedreja
essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Vencedor
Toma as
espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância
das espadas, toma
A adaga
de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração
-- estranho carniceiro!
Não podes?!
Chama então presto o primeiro
E o mais
possante gladiador de Roma.
E qual
mais pronto, e qual mais presto assoma
Nenhum
pôde domar o prisioneiro.
Meu coração
triunfava nas arenas.
Veio depois
um domador de hienas
E outro
mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram
todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde
domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém
doma um coração de poeta!
A Ilha
de Cipango
Estou sozinho!
A estrada se desdobra
Como uma
imensa e rutilante cobra
De epiderfe
finíssima de areia...
E por essa
finíssima epiderme
Eis-me
passeando como um grande verme
Que, ao
sol, em plena podridão, passeia!
A agonia
do sol vai ter começo!
Caio de
joelhos, trêmulo... Ofereço
Preces
a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso
que nas águas se retrata
Nitidamente
repdoruz, exata,
A saudade
interior que há no meu peito...
tenho alucinações
de toda a sorte...
Impressionado
sem cessar com a Morte
E sentindo
o que um lázaro não sente,
Em negras
nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas
adagas,
Atravessando
os ares bruscamente.
Os olhos
volvo para o céu divino
E observo-me
pigmeu e pequenino
Através
de minúsculos espelhos.
Assim,
quem diante duma cordilheira,
Pára, entre
assombros, pela vez primeira,
Sente vontade
de cair de joelhos!
Soa o rumor
fatídico dos ventos,
Anunciando
desmoronamentos
De mil
lajedos sobre mil lajedos...
E ao longe
soam trágicos fracassos
De heróis,
partindo e fraturando os braços
Nas pontas
escarpadas dos rochedos!
Mas de
repente, num enleio doce,
Qual num
sonho arrebatado fosse,
Na ilha
encantada de Cipango tombo,
Da qual,
no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore
da perpétua maravilha,
À cuja
sombra descansou Colombo!
Foi nessa
ilha encantada de Cipango,
Verde,
afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando
amplo floral risonho,
Que Toscanelli
viu seu sonho extinto
E como
sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre
essa ilha que extingui meu sonho!
Lembro-me
bem. Nesse maldito dia
O gênio
singular da Fantasia
Convidou-me
a sorrir para um passeio...
Iríamos
a um país de eternas pazes
Onde em
cada deserto há mil oásis
E em cada
rocha um cristalino veio.
Gozei numa
hora séculos de afagos,
Banhei-me
na água de risonhos lagos,
E finalmente
me cobri de flores...
Mas veio
o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me
com o pano da mortalha,
Que estou
cosendo para os meus amores!
Desde então
para cá fiquei sombrioi!
Um penetrante
e corrosivo frio
Anestesiou-me
a sensibilidade
E a grandes
golpes arrancou as raízes
Que prendiam
meus dias infelizes
A um sonho
antigo de felicidade!
Invoco
os Deuses salvadores do erro.
A tarde
morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve
siguezagues tortos
Enviando
à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada
feral dois realejos
Estão chorando
meus amores mortos!
E a treva
ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento
é uma caverna oblonga
Em cujo
fundo a Via-Láctea existe.
E como
agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita
vinte vezes a ilha
Que para
todo o sempre me fez triste!
Mater
Como a
crisálida emergindo do ovo
Para que
o campo flórido a concentre,
Assim,
oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre
dores, te emergiu do ventre!
E puseste-lhe,
haurindo amplo deleite,
No lábio
róseo a grande teta farta
-- Fecunda
fonte desse mesmo leite
Que amamentou
os éfebos de Esparta. --
Com que
avidez ele essa fonte suga!
Ninguém
mais com a Beleza está de acordo,
Do que
essa pequenina sanguessuga,
Bebendo
a vida no teu seio gordo!
Pois, quanto
a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas
coisas pequeninas
A um biscuit
de quilate muito raro
Exposto
aí, à amostra, nas vitrinas.
Mas o ramo
fragílimo e venusto
Que hoje
nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescer,
há de tornar-se arbusto
E álamo
altivo de ramagem grossa.
Clara,
a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá
das épocas sadias...
E o antigo
leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te
as mãos todos os dias!
Quando
chegar depois tua velhice
Batida
pelos bárbaros invernos,
Relembrarás
chorando o que eu te disse,
À sombra
dos sicômoros eternos!
Poema negro
A Santos
Neto
Para iludir
minha desgraça, estudo.
Intimamente
sei que não me iludo.
Para onde
vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus
olhares fúnebres, carrego
A indiferença
estúpida de um cego
E o ar
indolente de um chinês idiota!
A passagem
dos séculos me assombra.
Para onde
irá correndo minha sombra
Nesse cavalo
de eletricidade?!
Caminho,
e a mim pergunto, na vertigem:
-- Quem
sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me
um sonho a realidade.
Em vão
com o grito do meu peito impreco!
Dos brados
meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço
os braços numa angústia douda
E muita
vez, à meia-noite, rio
Sinistramente,
vendo o verme frio
Que há
de comer a minha carne toda!
É a Morte
-- esta carnívora assanhada --
Serpente
má de língua envenenada
Que tudo
que acha no caminho, come...
-- Faminta
e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sai para
assassinar o mundo inteiro,
E o mundo
inteiro não lhe mata a fome!
Nesta sombria
análise das cousas,
Corro.
Arranco os cadáveres das lousas
E as suas
partes podres examino...
Mas de
repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão
daquele embrulho hediondo
Reconheço
assombrado o meu Destino!
Surpreendo-me,
sozinho, numa cova.
Então meu
desvario se renova...
Como que,
abrindo todos os jazigos,
A Morte,
em trajes pretos e amarelos.
Levanta
contra mim grandes cutelos
E as baionetas
dos dragões antigos!
E quando
vi que aquilo vinha vindo
Eu fui
caindo como um sol caindo
De declínio
em declínio; e de declínio
Em declínio,
como a gula de uma fera,
Quis ver
o que era, e quando vi o que era,
Vi que
era pó, vi que era esterquilínio!
Chegou
a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio
agora essa grandeza,
Perante
a qual meus olhos se extasiam.
Eu desafio,
desta cova escura,
No histerismo
danado da tortura
Todos os
monstros que os teus peitos criam.
Tu não
és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu
chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste
vinte e duas vezes...
Por tua
causa apodreci nas cruzes,
Em que
pregas os filhos que produzes
Durante
os desgraçados nove meses!
Semeadora
terrível de defuntod,
Contra
a agressão dos teus contrastes juntos
A besta,
que em mim dorme, acorda em berros
Acorda,
e após gritar a última injúria,
Chocalha
os dentes com medonha fúria
Como se
fosso o atrito de dois ferros!
Pois bem!
Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste
o meu tempo de criança
E de segunda-feira
até domingo,
Amarrado
no horror de tua rede,
Deste-me
fogo quanto eu tinha sede...
Deixa-te
estar, canalha, que eu me vingo!
Súbito
outra visão negra me espanta!
Estou em
Roma. É Sexta-feira Santa.
A trava
invade o obscuro orbe terrestre
No Vaticano,
em grupos prosternados,
Com as
longas fardas rubras, os soldados
Buardam
o corpo do Divino Mestre.
Como as
estalactites da caverna,
Cai no
silêncio da Cidade Eterna
A água
da chuva em largos fios grossos...
De Jesus
Cristo resta unicamente
Um esqueleto;
e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade
de abraçar-lhe os ossos!
Não há
ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro
da igreja de São Pedro, quieta,
As luzes
funerais arquejam fracas...
O vento
entoa cânticos de morte.
Roma estremece!
Além, num rumor forte
Recomeça
o barulha das matracas.
A desagregação
da minha Idéia
Aumenta.
Como as chagas da morféia
O medo,
o desalento e o desconforto
Paralisam-me
os círculos motores.
Na Eternidade,
os ventos gemedores
Estão dizendo
que Jesus é morto!
Não! Jesus
não morreu! Vive na serra
Da Borborema,
no ar de minha terra,
Na molécula
e no átomo... Resume
A espiritualidade
da matéria
E ele é
que embala o corpo da miséria
E faz da
cloaca uma urna de perfume.
Na agonia
de tantos pesadelos
Uma dor
bruta puxa-me os cabelos.
Desperto.
É tão vazia a minha vida!
No pensamento
desconexo e falho
Trago as
cartas confusas de um baralho
E pedaço
de cera derretida!
Dorme a
casa. O céu dorme. A árvore dorme
Eu, somente
eu, com a minha dor enorme
Os olhos
ensangüento na vigília!
E observo,
enquanto o horror me corta a fala
O aspecto
sepulcral da austera sala
E a impassibilidade
da mobília.
Meu coração,
como um crital, se quebre
O termômetro
negue minha febre,
Torne-se
gelo o sangue que me abrase
E eu me
converta na cegonha triste
Que das
ruínas duma cassa assiste
Ao desmoronamento
de outra casa!
Ao terminar
este sendito poema
Onde vazei
a minha dor suprema
Tenho os
olhos em lágrimas imersos...
Rola-me
na cabeça o cérebro oco.
Por ventura,
meu Deus, estarei louco?!
Daqui por
diante não farei mais versos.
Eterna
mágoa
O homem
por sobre quem caiu a praga
Da tristeza
do Mundo, o homem que é triste
Para todos
os séculos existe
E nunca
mais o seu pesar se apaga!
Não crê
em nada, pois, nada há que traga
Consolo
à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir,
e quanto mais resiste
Mais se
lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que
sofre, mas o que não sabe
É que essa
mágoa infinda assim, não cabe
Na sua
vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe
a vida do seu corpo inerme;
E quando
esse homem se transforma em verme
É essa
mágoa que o acompanha ainda!
Queixas
noturnas
Quem foi
que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma
sai agoniada.
Andam monstros
sombrios pela estrada
E pela
estrada, entre estes monstros, ando!
Não trago
sobre a túnica fingida
As insígnias
medonhas do infeliz
Como os
falsos mendigos de Paris
Na atra
rua de Santa Margarida.
O quadro
de aflições que me consomem
O próprio
Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo,
era preciso a tinta
Feita de
todos os tormentos do homem!
Como um
ladrão sentado numa ponte
Espera
alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia
incoercível de roubar a luz,
Estou à
espera de que o Sol desponte!
Bati nas
pedras dum tormento rude
E a minha
mágoa de hoje é tão intensa
Que eu
penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza
é minha única saúde.
As minhas
roupas, quero até rompê-las!
Quero,
arrancado das prisões carnais,
Viver na
luz dos astros imortais,
Abraçado
com todas as estrelas!
A Noite
vai crescendo apavorante
E dentro
do meu peito, no combate,
A Eternidade
esmagadora bate
Numa dilatação
exorbitante!
E eu luto
contra a universal grandeza
Na mais
terrível desesperação
É a luta,
é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura
contra a natureza!
Para essas
lutas uma vida é pouca
Inda mesmo
que os músculos se esforcem;
Os pobres
braços do mortal se torcem
E o sangue
jorra, em coalhos, pela boca.
E muitas
vezes a agonia é tanta
Que, rolando
dos últimos degraus,
O Hércules
treme e vai tombar no caos
De onde
seu corpo nunca mais levanta!
É natural
que esse Hércules se estorça,
E tombe
para sempre nessas lutas,
Estrangulado
pelas rodas brutas
Do mecanismo
que tiver mais força.
Ah! Por
todos os séculos vindouros
Há de travar-se
essa batalha vã
Do dia
de hoje contra o de amanhã,
Igual à
luta dos cristãos e mouros!
Sobre histórias
de amor o interrogar-me
É vão,
é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou
capaz de amar mulher alguma
Nem há
mulher talvez capaz de amar-me.
O amor
tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo
tempo que faz bem, faz mal;
O coração
do Poeta é um hospital
Onde morreram
todos os doentes.
Hoje é
amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção
matutina que recebo...
E é tudo;
o pão que como, a água que bebo,
O velho
tamarindo a que me encosto!
Vou enterrar
agora a harpa boêmia
Na atra
e assombrosa solidão feroz
Onde não
cheguem o eco duma voz
E o grito
desvairado da blasfêmia!
Que dentro
de minh’alma americana
Não mais
palpite o coração -- esta arca,
Este relógio
trágico que marca
Todos os
atos da tragédia humana!
Seja esta
minha queixa derradeira
Cantada
sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este,
enfim, o último canto meu
Por esta
grande noite brasileira!
Melancolia!
Estende-me tu’asa!
És a árvore
em que devo reclinar-me...
Se algum
dia o Prazer vier procurar-me
Dize a
este monstro que fugi de casa!
Insônia
Noite.
Da Mágoa o espírito noctâmbulo
Passou
de certo por aqui chorando!
Assim,
em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo...
sonâmbulo... sonâmbulo...
Que voz
é esta que a gemer concentro
No meu
ouvido e que do meu ouvido
Como um
bemol e como um sustenido
Rola impetuosa
por meu peito adentro?!
-- Por
que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos
meus olhos no sombrio palco
Súbito
surge como um catafalco
Uma cidade
ou mapa-múndi estranha.
A dispersão
dos sonhos vagos reúno.
Desta cidade
pelas ruas erra
A procissão
dos Mártires da Terra
Desde os
Cristãos até Giordano Bruno!
Vejo diante
de mim Santa Francisca
Que com
o cilício as tentações suplanta,
E invejo
o sofrimento desta Santa,
Em cujo
olhar o Vício não faísca!
Se eu pudesse
ser puro! Se eu pudesse,
Depois
de embebedado deste vinho.
Sair da
vida puro como o arminho
Que os
cabelos dos velhos embranquece!
Por que
cumpri o universal ditame?!
Pois se
eu sabia onde morava o Vício,
Por que
não evitei o precipício
Estrangulando
minha carne infame?!
Até que
dia o intoxicado aroma
Das paixões
torpes sorverei contente?
E os dias
correrão eternamente?!
E eu nunca
sairei desta Sodoma?!
À proporção
que a minha insônia aumenta
Hieróglifos
e esfinges interrogo...
Mas, triunfalmente,
nos céus altos, logo
Toda a
alvorada esplêndida se ostenta.
Vagueio
pela Noite decaída...
No espaço
a luz de Aldebarã e de Árgus
Vai projetando
sobre os campos largos
O derradeiro
fósforo da Vida.
O Sol,
equilibrando-se na esfera,
Restitui-me
a pureza da hematose
E então
uma interior metamorfose
Nas minhas
arcas cerebrais se opera.
O odor
da margarida e da begônia
Subitamente
me penetra o olfato...
Aqui, neste
silêncio e neste mato,
Respira
com vontade a alma campônia!
Grita a
satisfação na alma dos bichos.
Incensa
o ambiente o fumo dos cachimbos.
As árvores,
as flores, os corimbos,
Recordam
santos nos seus próprios nichos.
Com o olhar
a verde periferia abarco.
Estou alegre.
Agora, por exemplo,
Cercado
destas árvores, contemplo
As maravilhas
reais do meu Pau d’Arco!
Cedo virá,
porém, o funerário,
Atro dragão
da escura noite, hedionda,
Em que
o Tédio, batendo na alma, estronda
Como um
grande trovão extraordinário.
Outra vez
serei pábulo do susto
E terei
outra vez de, em mágoa imerso,
Sacrificar-me
por amor do Verso
No meu
eterno leito de Procusto!
Barcarola
Camtam
nautas, choram flautas
Pelo mar
e pelo mar
Uma sereia
a cantar
Vela o
Destino dos nautas.
Espelham-se
os esplendores
Do céu,
em reflexos, nas
Águas,
fingindo cristais
Das mais
deslumbrantes cores.
Em fulvos
filões doirados
Cai a luz
dos astros por
Sobre o
marítimo horror
Como globos
estrelados.
Lá onde
as rochas se assentam
Fulguram
como outros sóis
Os flamívomos
faróis
Que os
navegantes orientam.
Vai uma
onda, vem outra onda
E nesse
eterno vaivém
Coitadas!
não acham quem,
Quem as
esconda, as esconda...
Alegoria
tristonha
Do que
pelo Mundo vai!
Se um sonha
e se ergue, outro cai;
Se um cai,
outro se ergue e sonha.
Mas desgraçado
do pobre
Que em
meio da Vida cai!
Esse não
volta, esse vai
Para o
túmulo que o cobre.
Vagueia
um poeta num barco.
O Céu,
de cima, a luzir
Como um
diamante de Ofir
Imita a
curva de um arco.
A Lua --
globo de louça --
Surgiu,
em lúcido véu.
Cantam!
Os astros do Céu
Ouçam e
a Lua Cheia ouça!
Ouço do
alto a Lua Cheia
Que a sereia
vai falar...
Haja silêncio
no mar
Para se
ouvir a sereia.
Que é que
ela diz?! Será uma
História
de amor feliz?
Não! O
que a sereia diz
Não é história
nenhuma.
É como
um requiem profundo
De tristíssimos
bemóis...
Sua voz
é igual à voz
Das dores
todas do mundo.
“Fecha-te
nesse medonho
“Redudo
de Maldição,
“Viajeiro
da Extrema-Unção,
“Sonhador
do último sonho!
“Numa redoma
ilusória
“Cercou-te
a glória falaz,
“Mas nunca
mais, nunca mais
“Há de
cercar-te essa glória!
“Nunca
mais! Sê, porém, forte.
“O poeta
é como Jesus!
“Abraça-te
à tua Cruz
“E morre,
poeta da Morte!”
-- E disse
e porque isto disse
O luar
no Céu se apagou...
Súbito
o barco tombou
Sem que
o poeta o pressentisse!
Vista de
luto o Universo
E Deus
se enlute no Céu!
Mais um
poeta que morreu,
Mais um
coveiro do Verso!
Cantam
nautas, choram flautas
Pelo mar
e pelo mar
Uma sereia
a cantar
Vela o
Destino dos nautas!
Tristezas
de um quarto minguante
Quarto
Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho
Pau d’Arco é muito triste...
Nos engenhos
da várzea não existe
Talvez
um outro que se lhe equipare!
Do observatório
em que eu estou situado
A lua magra,
quando a noite cresce,
Vista,
através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo
quebrado!
O sono
esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300
quilos no epigastro...
Dói-me
a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra
a metade de uma casca de ovo.
Diabo!
Não ser mais tempo de milagre!
Para que
esta opressão desapareça
Vou amarrar
um pano na cabeça,
Molhar
a minha fornte com vinagre.
Aumentam-se-me
então os grandes medos.
O hemisfério
lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento
de borracha,
Variando
à ação mecânica dos dedos!
Vai-me
crescendo a aberração do sonho.
Morde-me
os nervos o desejo doudo
De dissolver-me,
de enterrar-me todo
Naquele
semicírculo medonho!
Mas tudo
isto é ilusão de minha parte!
Quem sabe
se não é porque não saio
Desde que,
6ª feira, 3 de maio,
Eu escrevi
os meus Gemidos de Arte?!
A lâmpada
a estirar línguas vermelhas
Lambe o
ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um
degenerado psicopata
Eis-me
a contar o número das telhas!
-- Uma,
duas, três, quatro... E aos tombos, tonta
Sinto a
cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta
recomeço, em ânsias: -- Uma...
Mas novamente
eis-me a perder a conta!
Sucede
a uma tontura outra tontura.
-- Estarei
morto?! E a esta pergunta estranha
Responde
a Vida -- aquela grande aranha
Que anda
tecendo a minha desventura! --
A luz do
quarto diminuindo o brilho
Segue todas
as fases de um eclipse...
Começo
a ver coisas de Apocalipse
No triângulo
escaleno do ladrilho!
Deito-me
enfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóis
balançam numa corda,
Mas aquilo
mortalhas me recorda,
E o amontoamento
dos lençóis desmancho.
Vêm-me
à imaginação sonhos dementes.
Acho-me,
por exemplo, numa festa...
Tomba uma
torre sobre a minha testa,
Caem-me
de uma só vez todos os dentes!
Então dois
ossos roídos me assombram...
-- “Por
ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes
já não querem mais comer-nos
E os formigueiros
já nos desprezaram”.
Figuras
espectrais de bocas tronchas
Tornam-me
o pesadelo duradouro...
Choro e
quero beber a água do choro
Com as
mãos dispostas à feição de conchas.
Tal uma
planta aquática submersa,
Antegozando
as últimas delícias
Mergulho
as mãos -- vis raízes adventícias --
No algodão
quente de um tapete persa.
Por muito
tempo rolo no tapete.
Súbito
me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre
o meu estômago vazio
Como se
fosse um copo de sorvete!
A alta
frialdade me insensibiliza;
O suor
me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha família
ainda está dormindo
E eu não
posso pedir outra camisa!
Abro a
janela. Elevam-se fumaças
Do engenho
enorme. A luz fulge abundante
E em vez
do sepulcral Quarto Minguante
Vi que
era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratórios
tênues tubos
Dos poros
vegetais, no ato da entrega
Do mato
verde, a terra resfolega
Estrumada,
feliz, cheia de adubos.
Côncavo,
o céu, radiante e estriado, observa
A universal
criação. Broncos e feios,
Vários
reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros
tinhorões e da úmida erva.
Babujada
por baixos beiços brutos,
No húmus
feraz, hierática, se ostenta
A monarquia
da árvore opulenta
Que dá
aos homens o óbolo dos frutos.
De mim
diverso, rígido e de rastos
Com a solidez
do tegumento sujo
Sulca,
em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente
pelos mata-pastos.
Entretanto,
passei o dia inquieto,
A ouvir,
nestes bucólicos retiros
Toda a
salva festal de 21 tiros
Que festejou
os funerais de Hamleto!
Ah! Minha
ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera
ser, numa última cobiça,
A fatia
esponjosa de carniça
Que os
corvos comem sobre as jurubebas!
Porque,
longe do pão com que me nutres
Nesta hora,
oh! Vida em que a sofrer me enxotas
Eu estaria
como as bestas mortas
Pendurado
no bico dos abutres!
Mistérios
de um fósforo
Pego de
um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois.
E o que depois fica e depois
Resta é
um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos
dentro de um carvão promíscuo.
Dois são,
porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual
psique humana tece e
O outro
é o do sonho altruístico da espécie
Que é o
substractum dos sonhos do indivíduo!
E exclamo,
ébrio, a esvaziar báquicos odres:
-- “Cinza,
síntese má da podridão,
“Miniatura
alegórica do chão,
“Onde os
ventres maternos ficam podres;
“Na tua
clandestina e erma alma vasta,
“Onde nenhuma
lâmpada se acende,
“Meu raciocínio
sôfrego surpreende
“Todas
as formas da matéria gasta!”
Raciocinar!
Aziaga contingência!
Ser quadrúpede!
Andar de quatro pés
É mais
do que ser Cristo e ser Moisés
Porque
é ser animal sem ter consciência!
Bêbedo,
os beiços na ânfora ínfima, harto,
Mergulho,
e na ínfima ânfora, harto, sinto
O amargor
específico do absinto
E o cheiro
animalíssimo do parto!
E afogo
mentalmente os olhos fundos
Na amorfia
da cítula inicial,
De onde,
por epigênese geral,
Todos os
organismos são oriundos.
Presto,
irrupto, através ovóide e hialino
Vidro,
aparece, amorfo e lúrido, ante
Minha massa
encefálica minguante
Todo o
gênero humano intra-uterino!
É o caos
da avita víscera avarenta
-- Mucosa
nojentíssima de pus,
A nutrir
diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades
da placenta! --
Certo,
o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo
o mesmo inda e, que, ora, o que nele
Morre,
sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem
de um ventre inchado, ínfimo e infecto!
É a flor
dos genealógicos abismos
-- Zooplasma
pequeníssimo e plebeu,
De onde
o desprotegido homem nasceu
Para a
fatalidade dos tropismos. --
Depois,
é o ceu abscôndito do Nada,
É este
ato extraordinário de morrer
Que há
de na última hebdômada, atender
Ao pedido
da clélula cansada!
Um dia
restará, na terra instável,
De minha
antropocêntrica matéria
Numa côncava
xícara funérea
Uma colher
de cinza miserável!
Abro na
treva os olhos quase cegos.
Que mão
sinistra e desgraçada encheu
Os olhos
tristes que meu Pai me deu
De alfinetes,
de agulhas e de pregos?!
Pesam sobre
o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro
um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia
de um moinho,
Move todos
os meus nervos vibráteis.
Então,
do meu espírito, em segredo,
Se escapa,
dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese
acrobática de um salto,
O espectro
angulosíssimo do Medo!
Em cismas
filosóficas me perco
E vejo,
como nunca outro homem viu,
Na anfigonia
que me produziu
Nonilhões
de moléculas de esterco.
Vida, mônada
vil, cósmico zero,
Migalha
de albumina semifluida,
Que fez
a boca mística do druida
E a língua
revoltada de Lutero;
Teus gineceus
prolíficos envolvem
Cinza fetal!...
Basta um fósforo só
Para mostrar
a incógnita de pó,
Em que
todos os seres se resolvem!
Ah! Maldito
o conúbio incestuoso
Dessas
afinidades eletivas,
De onde
quimicamente tu derivas,
Na aclamação
simbiótica do gozo!
O enterro
de minha última neurona
Desfila...
E eis-me outro fósforo a riscas.
E esse
acidente químico vulgar
Extraordinariamente
me impressiona!
Mas minha
crise artrítica não tarda.
Adeus!
Que eu vejo enfim, com a alma vencida
Na abjeção
embriológica da vida
O futuro
de cinza que me aguarda!
OUTRAS POESIAS
O Lamento
das coisas
Triste,
a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade
dos segundos,
Ouço, em
sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro
da Energia abandonada!
É a dor
da Força desaproveitada
-- O cantochão
dos dínamos profundos,
Que, podendo
mover milhões de mundos,
Jazem ainda
na estática do Nada!
É o soluço
da forma ainda imprecisa...
Da transcendência
que se não realiza...
Da luz
que não chegou a ser lampejo...
E é em
suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza
que parou, chorando,
No rudimentarismo
do Desejo!
O meu nirvana
No alheamento
da obscura forma humana,
De que,
pensando, me desencarcero,
Foi que
eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei,
afinal, o meu Nirvana!
Nessa manumissão
schopenhauereana,
Onde a
Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga,
eu, feito força, impero
Na imanência
da Idéia Soberana!
Destruída
a sensação que oriunda fora
Do tato
-- ínfima antena aferidora
Destas
tegumentárias mãos plebéias --
Gozo o
prazer, que os anos não carcomem,
De haver
trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade
das Idéias!
Caput Immortale
Na dinâmica
aziaga das descidas,
Aglomeradamente
e em turbilhão
Solucem
dentro do Universo ancião,
Todas as
urbes siderais vencidas!
Morra o
éter. Cesse a luz. Parem as vidas.
Sobre
a pancosmológica exaustão
Reste apenas
o acervo árido e vão
Das muscularidades
consumidas!
Ainda assim,
a animar o cosmos ermo,
Morto o
comércio físico nefando,
OH! Nauta
aflito do Subliminal,
Como a
última expressão da Dor sem termo,
Tua cabeça
há de ficar vibrando
Na negatividade
universal!
Apóstrofe
à carne
Quando
eu pego nas carnes do meu rosto
Pressinto
o fim da orgânica batalha:
-- Olhos
que o húmus necrófago estracalha,
Diafragmas,
decompondo-se, ao sol posto...
E o Homem
-- negro heteróclito composto,
Onde a
alva flama psíquica trabalha.
Desagrega-se
e deixa na mortalha
O tato,
a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!
Carne,
feixe de mônadas bastardas.
Conquanto
em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar
relampejantes brilhos.
Dói-me
ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua
podridão a herança horrenda,
Que eu
tenho de deixar para os meus filhos!
Louvor
à unidade
“Escafandros,
arpões, sondas e agulhas
“Debalde
aplicas aos heterôgeneos
“Fenômenos,
e, há inúmeros milênios,
“Num pluralismo
hediondo o olhar mergulhas!
“Une, pois,
a irmanar diamantes e hulhas,
“Com essa
intuição monística dos gênios,
“A hirta
forma falaz do aere perennius
“A transitoriedade
das fagulhas!”
-- Era
a estrangulaçao, sem retumbância,
Da multimilenária
dissonância
Que as
harmonias siderais invade...
Era, numa
alta aclamação, sem gritos,
O regresso
dos átomos aflitos
Ao descanso
perpétuo da Unidade!
O pântano
Podem vê-lo,
sem dor, meus semelhantes!...
Mas, para
mim que a Natureza escuto,
Este pântano
é o túmulo absoluto,
De todas
as grandezas começantes!
Larvas
desconhecidas de gigantes
Sobre o
seu leito de peçonha e luto
Dormem
tranqüilamente o sono bruto
Dos superorganismos
ainda infantes!
Em sua
estagnação arde uma raça,
Tragicamente,
à espera de quem passa
Para abrir-lhe,
às escâncaras, a porta...
E eu sinto
a angústia dessa raça ardente
Condenada
a esperar perpetuamente
No universo
esmagado da água morta!
Suprême
convulsion
O equilíbrio
do humano pensamento
Sofre também
a súbita ruptura,
Que produz
muita vez, na noite escura,
A convulsão
meteórica do vento.
E a alma
o obnóxio quietismo sonolento
Rasga;
e, opondo-se à Inércia, é a essência pura,
É a síntese,
é o transunto, é a abreviatura
De todo
o ubiqüitário Movimento!
Sonho,
-- libertação do homem cativo --
Ruptura
do equilíbrio subjetivo,
Ah! foi
teu beijo convulsionador
Que produziu
este contraste fundo
Entre a
abundância do que eu sou, no Mundo,
E o nada
do meu homem interior!
A um gérmen
Começaste
a existir, geléia crua,
E hás de
crescer, no teu silêncio, tanto
Que, é
natural, ainda algum dia, o pranto
Das tuas
concreções plásmicas flua!
A água,
em conjugação com a terra nua,
Vence o
granito, deprimindo-o... O espanto
Convulsiona
os espíritos, e, entanto,
Teu desenvolvimento
contunua!
Antes,
geléia humana, não progridas
E em retrogradações
indefinidas,
Volvas
à antiga inexistência calma!...
Antes o
Nada, oh! gérmen, que ainda haveres
De atingir,
como o gémen de outros seres,
Ao supremo
infortúnio de ser alma!
Natureza
íntima
Ao filósofo
Farias Brito
Cansada
de observar-se na corrente
Que os
acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se
em si mesma, um dia,
A Natureza
olhou-se interiormente!
Baldada
introspecção! Noumenalmente
O que Ela,
em realidade, ainda sentia
Era a mesma
imortal monotonia
De sua
face externa indiferente!
E a Natureza
disse com desgosto:
“Terei
somente, porventura, rosto?!
“Serei
apenas mera crusta espessa?!
“Pois é
possível que Eu, causa do Mundo,
“Quando
mais em mim mesma me aprofundo
“Menos
interiormente me conheça?!”
A floresta
Em vão
com o mundo da floresta privas!
-- Todas
as hermenêuticas sondagens,
Ante o
hieroglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente
negativas!
Araucárias,
traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos
de álamos selvagens,
Como um
convite para estranhas viagens,
Tornam
todas as almas pensativas!
Há uma
força vencida nesse mundo!
Todo o
organismo florestal profundo
É dor viva,
trancada num disfarce...
Vivem só,
nele, os elementos broncos,
-- As ambições
que se fizeram troncos,
Porque
nunca puderam realizar-se!
A meretriz
A rua dos
destinos desgraçados
Faz medo.
O Vício estruge. Ouvem-se os brados
Da danação
carnal... Lúbrica, à lua,
Na sodomia
das mais negras bodas
Desarticula-se,
em coréas doudas,
Uma mulher
completamente nua!
É a meretriz
que, de cabelos ruivos,
Bramando,
ébria e lasciva, hórridos uivos
Na mesma
esteira pública, recebe,
Entre farraparias
e esplendores,
O eretismo
das classes superiores
E o orgasmo
bastardíssimo da plebe!
É ela que,
aliando, à luz do olhar protervo,
O indumento
vilíssimo do servo
Ao brilho
da augustal toga pretexta,
Sente,
alta noite, em contorções sombrias,
Na vacuidade
das entranhas frias
O esgotamento
intrínseco da besta!
É ela que,
hirta, a arquivar credos desfeitos,
Com as
mãos chagadas, espremendo os peitos,
Reduzidos,
por fim, a âmbulas moles,
Sofre em
cada molécula a angústia alta
De haver
secado, como o estepe, à falta
Da água
criadora que alimenta as proles!
É ela que,
arremessada sobre o rude
Despenhadeiro
da decrepitude,
Na vizinhança
aziaga dos ossuários
Representa,
através os meus sentidos,
A escuridão
dos gineceus falidos
E a desgraça
de todos os ovários!
Irrita-se-lhe
a carne à meia-noite.
Espicaça-se
a ignomínia, excita-a o acoite
Do incêndio
que lha inflama a língua espúria.
E a mulher,
funcionária dos instintos,
Com a roupa
amarfanhada e os beiços tintos,
Gane instintivamente
de luxúria!
Navio para
o qual todos os portos
Estão fechados,
urna de ovos mortos,
Chão de
onde uma só planta não rebenta,
Ei-la,
de bruços, bêbeda de gozo
Saciando
o geotropismo pavoroso
De unir
o corpo à terra famulenta!
Nesse espolinhamento
repugnante
O esqueleto
irritado da bacante
Estrala...
Lembra o ruído harto azorrague
A vergastar
ásperos dorsos grossos.
E é aterradora
essa alegria de ossos
Pedindo
ao sensualismo que os esmague!
É o pseudo-regozijo
dos eunucos
Por natureza,
dos que são caducos
Desde que
a Mãe-Comum lhes deu início...
É a dor
profunda da incapacidade
Que, pela
própria hereditariedade
A lei da
seleção disfarça em Vício!
É o júbilo
aparente da alma quase
A eclipsar-se,
no horror da ocídua fase
Esterilizadora
de órgãos... É o hino
Da matéria
incapaz, filha do inferno,
Pagando
com volúpia o crime eterno
De não
ter sido fiel ao seu destino!
É o Desespero
que se faz bramido
De anelo
animalíssimo incontido,
Mais que
a vaga incoercível na água oceânea...
É a Carne
que, já morta essencialmente,
Para a
Finalidade Transcendente
Gera o
prodígio anímico da Insânia!
Nas frias
antecâmeras do Nada
O fantasma
da fêmea castigada,
Passa agora
ao clarão da lua acesa
E é seu
corpo expiatório, alvo e desnudo
A síntese
eucarística de tudo
Que não
se realizou na Natureza!
Antigamente,
aos tácitos apelos
Das suas
carnes e dos seus cabelos,
Na Óptica
abreviatura de um reflexo,
Fulgia,
em cada humana nebulosa,
Toda a
sensualidade tempestuosa
Dos apetites
bárbaros do Sexo!
O atavismo
das raças sibaritas,
Criando
concupiscências infinitas
Como eviterno
lobo insatisfeito;
Na homofagia
hedionda que o consome,
Vinha saciar
a milenária fome
Dentro
das abundâncias do seu leito!
Toda a
libidinagem dos mormaços
Americanos
fluía-lhe dos braços,
Irradiava-se-lhe,
hírcica, das veias
E em torrencialidades
quentes e úmidas,
Gorda a
escorrer-lhe das ártérias túmidas
Lembrava
um transbordar de ânforas cheias.
A hora
da morte acende-lhe o intelecto
E à úmida
habitação do vício abjecto
Afluem
milhões de sóis, rubros, radiando...
Resíduos
memoriais tornan-se luzes
Fazem-se
idéias e ela vê as cruzes
Do seu
martirológico miserando!
Inícios
atrofiados de ética, ânsia
De perfeição,
sonhos de culminância,
Libertos
da ancestral modorra calma,
Saem da
infância embrionária e erguem-se, adultos,
Lançando
a sombra horrível dos seus vultos
Sobre a
noite fechada daquela alma!
É o sublevamento
coletivo
De um mundo
inteiro que aparece vivo,
Numa cenografia
de diorama,
Que, momentaneamente
luz fecunda,
Brilha
na prostituta moribunda
Como a
fosforecência sobre a lama!
É a visita
alarmante do que outrora
Na abundância
prospérrima da aurora,
Pudera
progredir, talvez, decerto,
Mas que,
adstrito a inferior plasma inconsútil,
Ficou rolando,
como aborto inútil,
Como o
................. do deserto!
Vede! A
prostituição ofídia aziaga
Cujo tóxico
instila a infâmia , e a estraga
Na delinqüência
.............. impune,
Agarrou-se-lhe
aos seios impudicos
Como o
abraço mortífero do Ficus
Sugando
a seiva da árvore a que se une!
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
Enroscou-se-lhe
aos abraços com tal gosto,
Mordeu-lhe
a boca e o rosto...
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
.................................................................................
Ser meretriz
depois do túmulo! A alma
Roubada
a hirta quietude da urbe calma
onde se
extinguem todos os escolhos:
E, condenada,
ao trágico ditame,
Oferecer-se
à bicharia infame
Com a terra
do sepulcro a encher-lhe os olhos!
Sentir
a língua aluir-se-lhe na boca
E com a
cabeça sem cabelos, oca...
.................................................................................
Na horrorosa
avulsão da forma nívea
Dizer ainda
palavras de lascívia
.................................................................................
|
Guerra
Guerra é
esforço, é inquietude, á ânsia, é transporte...
É a dramatização
sangrenta e dura
Da avidez com
que o Espírito procura
Ser perfeito,
ser máximo, ser forte!
É a
Subconsciência que se transfigura
Em volição
conflagradora... É a coorte
Das raças todas,
que se entrega à morte
Para a
felicidade da Criatura!
É a obsessão de
ver sangue, é o instinto horrendo
De subir, na
ordem cósmica, descendo
À
irracionalidade primitiva...
É a Natureza
que, no seu arcano,
Precisa de
encharcar-se em sangue humano
Para mostrar aos
homens que está viva!
O sarcófago
Senhor da alta
hermenêutica do Fado
Perlustro o atrium
da Morte... É frio o ambiente
E a chuva corta
inexoravelmente
O dorso de um
sarcófago molhado!
Ah! Ninguém ouve
o soluçante brado
De dor produnfa,
acérrima e latente,
Que o sarcófago,
ereto e imóvel, sente
Em sua própria
sombra sepultado!
Dói-lhe (quem
sabe?!) essa grandeza horrível,
Que em toda a
sua máscara se expande,
À humana comoção
impondo-a, inteira...
Dói-lhe, em
suma, perante o Incognoscível,
Essa fatalidade
de ser grande
Para guardar
unicamente poeira!
Hino à dor
Dor, saúde dos
seres que se fanam,
Riqueza da alma,
psíquico tesouro,
Alegria das glândulas
do choro
De onde todas as
lágrimas emanam...
És suprema! Os
meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados,
sol do cérebro, ouro
De que as
próprias desgraças se engalanam!
Sou teu amante!
Ardo em teu corpo abstrato.
Com os
corpúsculos mágicos do tato
Prendo a
orquestra de chamas que executas...
E, assim, sem
convulsão que me alvorece,
Minha maior
ventura é estar de posse
De tuas
claridades absolutas!
Última visio
Quando o homem,
resgatado da cegueira
Vir Deus num
simples grão de argila errante,
Terá nascido
nesse mesmo instante
A mineralogia
derradeira!
A impérvia
escuridão obnubilante
Há de cessar! Em
sua glória inteira
Deus
resplandecerá dentro da poeira
Como um
gasofiláceo de diamante!
Nessa última
visão já subterrânea,
Um movimento
universal de insânia
Arrancará da
insciência o homem precito...
A Verdade virá
das pedras mortas
E o homem
compreenderá todas as portas
Que ele ainda
tem de abrir para o Infinito!
Aos meus filhos
Na intermitência
da vital canseira,
Sois vós que
sustentais (Força Alta exige-o...)
Com o vosso
catalítico prestígio,
Meu fantasma de
carne passageira!
Vulcão da
bioquímica fogueira
Destruiu-me todo
o orgânico fastígio...
Dai-me asas,
pois, para o último remígio,
Dai-me alma, pois,
para a hora derradeira!
Culminâncias
humanas ainda obscuras,
Expressões do
universo radioativo,
Íons emanados do
meu próprio ideal,
Benditos vós,
que, em épocas futuras,
Haveis de ser no
mundo subjetivo,
Minha
continuidade emocional!
A dança da
psique
A dança dos
encéfalos acesos
Começa. A carne
é fogo, A alma arde, A espaços
As cabeças, as
mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo
à ação de ignotos pesos!
É então que a
vaga dos instintos presos
-- Mãe de
esterilidades e cansaços --
Atira os
pensamentos mais devassos
Contra os ossos
cranianos indefesos.
Subitamente a
cerebral coréia
Pára. O cosmos
sintético da Idéia
Surge. Emoções
extraordinárias sinto.
Arranco do meu
crânio as nebulosas
E acho um feixe
de forças prodigiosas
Sustentando dois
monstros: a alma e o instinto!
O poeta do
hediondo
Sofro
aceleradíssimas pancadas
No coração.
Ataca-me a existência
A mortificadora
coalescência
Das desgraças
humanas congregadas!
Em alucinatórias
cavalgadas,
Eu sinto, então,
sondando-me a consciência
A
ultra-inquisitorial clarividência
De todas as
neuronas acordadas!
Quanto me dói no
cérebro esta sonda!
Ah! Certamente
eu sou a mais hedionda
Generalização do
Desconforto...
Eu sou aquele
que ficou sozinho
Cantando sobre
os ossos do caminho
A poesia de tudo
quanto é morto!
A fome e a amor
A um monstro
Fome! E, na
ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras
mandíbulas e esbangem,
Os dentes
antropófagos que rangem,
Antes da
refeição sanguinolenta!
Amor! E a satiríase
sedenta,
Rugindo,
enquanto as almas se confrangem,
Todas as
danações sexuais que abrangem
A apolínica
besta famulenta!
Ambos assim,
tragando a ambiência vasta,
No
desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos,
os dois
Representam, no
ardor dos seus assomos,
A alegoria do
que outrora fomos
E a imagem
bronca do que inda hoje sois!
Homo infimus
Homem, carne sem
luz, criatura cega,
Realidade
geográfica infeliz,
O Universo
calado te renega
E a tua própria
boca te maldiz!
O nôumeno e o
fenômeno, o alfa e o ômega
Amarguram-te.
Hebdômadas hostis
Passam... Teu
coração se desagrega,
Sangram-te os
olhos, e, entretanto, ris!
Fruto
injustificável dentre os frutos,
Montão de
estercorária argila preta,
Excrescência de
terra singular.
Deixa a tua
alegria aos seres brutos,
Porque, na
superfície do planeta,
Tu só tens um
direito: -- o de chorar!
Minha finalidade
Turbilhão
teleolófico incoercível,
Que força alguma
inibitória acalma,
Levou-me o
crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam
apreender o Inapreensível!
Predeterminação
imprescriptivel
Oriunda da
infra-astral Substância calma
Plasmou,
aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de
preferência o Horrível!
Na canonização
emocionante,
Da dor humana,
sou maior que Dante,
-- A águia dos
latifúndios florentinos!
Sistematizo,
suluçando, o Inferno...
E trago em mim,
num sincronismo eterno
A fórmula de
todos os destinos!
Numa forja
De inexplicáveis
ânsias prisioneiro
Hoje entrei numa
forja, ao meio-dia.
Trinta e seis
graus à sombra. O éter possuía
A térmica
violência de um braseiro.
Dentro, a cuspir escórias
De fúlgida limalha
Dardejando
centelhas transitórias,
No horror da
metalúrgica batalha
O ferro chiava e ria!
Ria, num
sardonismo doloroso
De ingênita amargura,
Da qual, bruta, provinha
Como de um negro
cáspio de água impura
A multissecular desesperança
De sua espécia abjeta
Condenada a uma
estática mesquinha!
Ria com essa
metálica tristeza
De ser na Natureza,
Onde a Matéria avança
E a Substância caminha
Aceleradamente
para o gozo
Da integração completa.
Uma consciência
eternamente obscura!
O ferro
continuava a chiar e a rir,
E eu nervoso, irritado
Quase com febre, a ouvir
Cada átomo de ferro
Contra a incude esmagado
Sofrer, berrar, tinir.
Compreendia por
fim que aquele berro
À substância
inorgânica arrancado
Era a dor do
minério castigado
Na
impossibilidade de reagir!
Era um cosmos
inteiro sofredor,
Cujo negror profundo
Astro nenhum exorna
Gritando na bigorna
Asperamente a
sua própria dor!
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Para que à vida quente
Da sinergia
cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!
Era a revelação
De tudo que ainda dorme
No metal bruto
ou na geléia informe
No parto
primitivo da Criação!
Era o ruído-clarão,
-- O ígneo jato vulcânico
Que,
atravessando a absconsa cripta enorme
De minha cavernosa
subconsciência,
Punha em clarividência
Intramoleculares
sóis acesos
Perpetuamente às
mesmas formas presos,
Agarrados à
inércia do Inorgânico
Escravos da Coesão!
Repuxavam-me a
boca hórridos trismos
E eu sentia, afinal,
Essa angústia alarmante
Própria da
alienação raciocinante,
Cheia de ânsias e medos
Com crispações nos dedos
Piores que os paroxismos
Da árvore que a
atmosfera ultriz destronca.
A ouvir todo
esse cosmos potencial,
Preso aos
mineralógicos abismos
Angustiado e arquejante
A debater-se na
estreiteza bronca
De um bloco de metal!
Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Executava, em
lúgubre crescendo
A antífona assimétrica
E o
incompreensível wagnerismo aziago
De seu destino horrendo!
Ao clangor de
tais carmes de martírio
Em cismas negras
eu recaio imerso
Buscando no delírio
De uma
imaginação convulsionada
Mais revolta
talvez de que a onda atlântica
Compreender a semântica
Dessa aleluia
bárbara gritada
Às margens
glacialíssimas do Nada
Pelas coisas
mais brutas do Universo!
Noli me tangere
A exaltação
emocional do Gozo,
O Amor, a
Glória, a Ciência, a Arte e a Beleza
Servem de
combustíveis à ira acesa
Das tempestades
do meu ser nervoso!
Eu sou, por
conseqüência, um ser monstruoso!
Em minha arca
encefálica indefesa
Choram as forças
más da Natureza
Sem
possibilidades de repouso!
Agregados
anômalos malditos
Despedaçam-se,
mordem-se, dão gritos
Nas minhas camas
cerebrais funéreas...
Ai! Não toqueis
em minhas faces verdes,
Sob pena, homens
felizes, de sofrerdes
A sensação de
todas as misérias!
O Canto dos
presos
Troa, a alardear
bárbaros sons abstrusos,
O epitalâmio da
Suprema Falta,
Entoado
asperamente, em voz muito alta,
Pela
promiscuidade dos reclusos!
No wagnerismo
desses sons confusos,
Em que o Mal se
engrandece e o Ódio se exalta,
Uiva, à luz de
fantástica ribalta,
A ignomínia de
todos os abusos!
É a prosódia do
cárcere, é a partênea
Aterradoramente
heterogênea
Dos grandes
transviamentos subjetivos...
É a saudade dos
erros satisfeitos,
Que, não cabendo
mais dentro dos peitos,
Se escapa pela
boca dos cativos!
Aberração
Na velhice
automática e na infância,
(Hoje, ontem,
amanhã e em qualquer era)
Minha hibridez é
a súmula sincera
Das
defectividades da Substância:
Criando na alma
a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte
com a Quimera
Mato o ideal;
cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de
cadáver na fragrância!
Chamo-me
Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias
lúgubres. Existo
Como a cancro, a
exigir que os sãos enfermem...
Teço a infâmia;
urdo o crime; engendro o lodo
E nas mudanças
do Universo todo
Deixo inscrita a
memória do meu gérmen!
Vítima do
dualismo
Ser miserável
dentre os miseráveis
-- Carrego em
minhas células sombrias
Antagonismos
irreconciliáveis
E as mais
opostas idiosincrasias!
Muito mais cedo
do que o imagináveis
Eis-vos, minha
alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos
dualismos implacáveis
E à gula negra
das antinomias!
Psique biforme,
o Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um
tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais
variáveis elementos,
Ceva-se em minha
carne, como um corvo,
A simultaneidade
ultramonstruosa
De todos os
contrastes famulentos!
Ao luar
Quando, à noite,
o Infinito se levanta
À luz do luar,
pelos caminhos quedos
Minha tátil
intensidade é tanta
Que eu sinto a
alma do Cosmos nos meus dedos!
Quebro a
custódia dos sentidos tredos
E a minha mão,
dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe
estrangula em seus segredos,
Todas as coisas
íntimas suplanta!
Penetro, agarro,
ausculto, apreendo, invado
Nos paroxismos
da hiperestesia,
O Infinitésimo e
o Indeterminado...
Transponho
ousadamente o átomo rude
E, transmudado
em rutilância fria,
Encho o Espaço
com a minha plenitude!
A um epilético
Perguntarás quem
sou?! -- ao suor que te unta,
À dor que os
queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia
horrenda, e nos abismos
Ninguém
responderá tua pergunta!
Reclamada por
negros magnetismos
Tua cabeça há de
cair, defunta
Na aterradora
operação conjunta
Da tarefa animal
dos organismos!
Mas após o
antropófago alambique
Em que é mister
todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções
de sânie e lodo,
Como a luz que
arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar
completamente puro
Para a
circulação do Grande Todo!
Canto de
onipotência
Cloto, Átropos,
Tífon, Laquesis, Siva...
E acima deles,
como um astro, a arder,
Na
hiperculminação definitiva
O meu supremo e
estraordinário Ser!
Em minha
sobre-humana retentiva
Brilhavam, como
a luz do amanhecer,
A perfeição
virtual tornada viva
E o embrião do
que podia acontecer!
Por antecipação
divinatória,
Eu, projetado
muito além da História,
Sentia dos
fenômenos o fim...
A coisa em si
movia-se aos meus brados
E os
acontecimentos subjugados
Olhavam como
escravos para mim!
Minha árvore
Olha: É um
triângulo estéril de ínvia estrada!
Como que a erva
tem dor... Roem-na amarguras
Talvez humanas,
e entre rochas duras
Mostra ao Cosmos
a face degradada!
Entre os
pedrouços maus dessa morada
É que, às
apalpadelas e às escuras,
Hão de encontrar
as gerações futuras
Só, minha árvore
humana desfolhada!
Mulher nenhuma
afagará meu tronco!
Eu não me
abalarei, nem mesmo ao ronco
Do furacão que,
rábido, remoinha...
Folhas e frutos,
sobre a terra ardente
Hão de encher
outras árvores! Somente
Minha desgraça
há de ficar sozinha!
Anseio
Quem sou eu,
neste ergástulo das vidas
Danadamente, a
soluçar de dor?!
-- Trinta
trilhões de células vencidas,
Nutrindo uma
efeméride interior.
Branda, entanto,
a afagar tantas feridas,
A áurea mão
taumatúrgica do Amor
Traça, nas
minhas formas carcomidas,
A estrutura de
um mundo superior!
Alta noite, esse
mundo incoerente
Essa
elementaríssima semente
Do que hei de
ser, tenta transpor o Ideal...
Grita em meu
grito, alarga-se em meu hausto,
E, ai! como eu
sinto no esqueleto exausto
Não poder
dar-lhe vida material!
À mesa
Cedo à
sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa
hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a
ensangüentada presa,
Rodeado pelas
moscas repugnantes
Eis-me sentado à mesa!
Como porções de
carne morta... Ai! Como
Os que, como eu,
têm carne, com este assomo
Que a espécie
humana em comer carne tem!...
Como! E pois que
a Razão não me reprime,
Possa a terra
vingar-se do meu crime
Comendo-me também.
Mãos
Há mãos que fazem medo
Feias agregaçõs
pentagonais,
Umas, em sangue,
a delinqüentes natos,
Assinalados pelo
mancinismo,
Pertencentes talvez...
Outras, negras,
a farpas de rochedo
Completamente iguais...
Mãos de linhas
análogas e anfratos
Que a Natureza
onicriadora fez
Em contraposição
e antagonismo
Às da estrela,
às da neve, às dos cristais.
Mãos que
adquiriram olhos, pituitárias
Olfativas,
tentáculos sutis,
E à noite, vão
cheirar, quebrando portas
O azul
gasofiláceo silencioso
Dos tálamos cristãos.
Mãos adúlteras,
mãos mais sangüinárias
E estupradoras
do que os bisturis
Cortando a carne
em flor das crianças mortas.
Monstruosíssimas mãos,
Que apalpam e
olham com lascívia e gozo
A pureza dos
corpos infantis.
Revelação
I
Escafandrista de
insondado oceano
Sou eu que,
aliando Buda ao sibarita,
Penetro a
essência plasmática infinita,
-- Mãe promíscua
do amor e do ódio insano!
Sou eu que,
hirto, auscultando o absconso arcano,
Por um poder de
acústica esquisita,
Ouço o universo
ansioso que se agita
Dentro de cada
pensamento humano!
No abstrato
abismo equóreo, em que me inundo,
Sou eu que,
revolvendo o ego profundo
E a escuridão
dos cérebros medonhos,
Restituo
triunfalmente à esfera calma
Todos os cosmos
que circulam na alma
Sob a forma
embriológica de sonhos!
II
Treva e
fulguração; sânie e perfume;
Massa palpável e
éter; desconforto
E ataraxia; feto
vivo e aborto...
-- Tudo a
unidade do meu ser resume!
Sou eu que,
ateando da alma o ocíduo lume,
Apreendo, em
cisma abismadora absorto,
A potencialidade
do que é morto
E a eficácia
prolífica do estrume!
Ah! Sou eu que,
transpondo a escarpa angusta
Dos limites
orgânicos estreitos,
Dentro dos quais
recalco em vão minha ânsia,
Sinto bater na
putrescível crusta
Do tegumento que
me cobre os peitos
Toda a
imortalidade da Substância!
Versos a um
coveiro
Numerar
sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes
podres a algarismos,
Tal é, sem
complicados silogismos,
A aritmética
hedionda dos coveiros!
Um, dois, três,
quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu
vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão
dos números inteiros
A gênese de
todos os abismos!
Oh! Pitágoras da
última aritmética,
Continua a
contar na paz ascética
Dos tábidos
carneiros sepulcrais:
Tíbias,
cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita
como os próprios números,
A tua conta não
acaba mais!
Trevas
Haverá, por
hipótese, nas geenas
Luz bastante
fulmínea que transforme
Dentro da noite
cavernosa e enorme
Minhas trevas
anímicas serenas?!
Raio horrendo
haverá que as rasgue apenas?!
Não! Porque, na
abismal substância informe,
Para
convulsionar a alma que dorme
Todas as
tempestades são pequenas!
Há de a Terra
vibrar na ardência infinda
Do éter em
branca luz transubstanciado,
Rotos os nimbos
maus que a obstruem a esmo...
A própria
Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente
eu, hei de ficar trancado
Na noite
aterradora de mim mesmo!
As montanhas
I
Das nebulosas em
que te emaranhas
Levanta-te,
alma, e dize-me, afinal,
Qual é, na
natureza espiritual,
A significação
dessas montanhas!
Quem não vê nas
graníticas entranhas
A subjetividade
ascensional
Paralisada e
estrangulada, mal
Quis erguer-se a
cumíadas tamanhas?!
Ah! Nesse anelo
trágico de altura
Não serão as
montanhas, porventura,
Estacionadas,
íngremes, assim,
Por um
abortamento de mecânica,
A representação
ainda inorgânica
De tudo aquilo
que parou em mim?!
II
Agora, oh!
deslumbrada alma, perscuta
O puerpério
geológico interior,
De onde rebenta,
em contrações de dor,
Toda a
sublevação da crusta hirsuta!
No curso
inquieto da terráquea luta
Quantos desejos
férvidos de amor
Não dormem,
recalcados, sob o horror
Dessas
agregações de pedra bruta?!
Como nesses
relevos orográficos,
Inacessíveis aos
humanos tráficos
Onde sóis, em
semente, amam jazer,
Quem sabe, alma,
se o que ainda não existe
Não vive em
gérmem no agregado triste
Da síntese
sombria do meu Ser?!
Apocalipse
Minha
divinatória Arte ultrapassa
Os séculos
efêmeros e nota
Diminuição
dinâmica, derrota
Na atual força,
integérrima, da Massa.
É a subversão
universal que ameaça
A Natureza, e,
em noite aziaga e ignota,
Destrói a
ebulição que a água alvorota
E põe todos os
astros na desgraça!
São
despedaçamentos, derrubadas,
Federações
sidéricas quebradas...
E eu só, o
último a ser, pelo orbe adiante,
Espião da
cataclísmica surpresa,
A única luz
tragicamente acesa
Na
universalidade agonizante!
A nau
A Heitor de Lima
Sôfrega, alçando
o hirto esporão guerreiro,
Zarpa. A íngreme
cordoalha úmida fica...
Lambe-lhe a
quilha a espúmea onda impudica
E ébrios
tritões, babando, haurem-lhe o cheiro!
Na glauca
artéria equórea ou no estaleiro
Ergue a alma
mastreação, que o Éter indica,
E estende os
braços da madeira rica
Para as
populações do mundo inteiro!
Aguarda-a ampla
reentrância de angra horrenda,
Pára e, a amarra
agarrada à âncora, sonha!
Mágoas, se as
tem, subjugue-as ou disfarce-as...
E não haver uma
alma que lhe entenda
A angústia
transoceânica medonha
No rangido de
todas as enxárcias!
Volúpia imortal
Cuidas que o
genesíaco prazer,
Fomo do átomo e
eurítmico transporte
De todas as
moléculas, aborte
Na hora em que a
nossa carne apodrecer?!
Não! Essa luz
radial, em que arde o Ser,
Para a
perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente,
ainda depois da morte,
Dentro dos
ossos, continua a arder!
Surdos destarte
a apóstrofes e brados,
Os nossos
esqueletos descarnados,
Em convulsivas
contorções sensuais,
Haurindo o gás
sulfídrico das covas,
Com essa volúpia
das ossadas novas
Hão de ainda se
apertar cada vez mais!
O fim das coisas
Pode o homem
bruto, adstrito à ciência grave,
Arrancar, num
triunfo surpreendente,
Das profundezas
do Subconsciente
O milagre
estupendo da aeronave!
Rasgue os
broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo
sáxeo; e, na ânsia ardente
De perscrutar o
íntimo do orbe, invente
A lâmpada aflogística
de Davy!
Em vão! Contra o
poder criador do Sonho
O Fim das Coisas
mostra-se medonho
Como o
desaguadouro atro de um rio...
E quando, ao
cabo do último milênio,
A humanidade vai
pesar seu gênio
Encontra o
mundo, que ela encheu , vazio!
Viagem de um
vencido
Noite. Cruzes na
estrada. Aves com frio...
E, enquanto eu
tropeçava sobre os paus,
A efígie
apocalíptica do Caos
Dançava no meu
cérebro sombrio!
O Céu estava
horrivelmente preto
E as árvores
magríssimas lembravam
Pontos de
admiração que sa admiravam
De ver passar
ali meu esqueleto!
Sozinho, uivando
hoffmânicos dizeres,
Aprazia-me
assim, na escuridão,
Mergulhar minha
exótica visão
Na intimidade
noumenal dos seres.
Eu procurava,
com uma vela acesa,
O feto original,
de onde decorrem
Todas essas
moléculas que morrem
Nas
transubstanciações da Natureza.
Mas o que meus
sentidos apreendiam
Dentro da treva
lúgubre, era só
O ocaso
sistemático de pó,
Em que as formas
humanas se sumiam!
Reboava, num
ruidoso borborinho
Bruto, análogo
ao peã de márcios brados,
A rebeldia dos
meus pés danados
Nas pedras
resignadas do caminho.
Sentia estar
pisando com a planta ávida
Um povo de
radículas e embriões
Prestes a
rebentar como vulcões,
Do ventre
equatorial da terra grávida!
Dentro de mim,
como num chão profundo,
Choravam, com
soluços quase humanos,
Convulsionando
Céus, almas e oceanos
As formas
microscópicas do mundo!
Era a larva
agarrada a absconsas landes,
Era o abjeto
vibrião rudimentar
Na impotência
angustiosa de falar,
No desespero de
não serem grandes!
Vinha-me à boca,
assim, na ânsia dos párias,
Como o protesto
de uma raça invicta,
O brado
emocionante da vindicta
Das
sensibilidades solitárias!
A longanimidade
e o vilipêndio,
A abstinência e
a luxúria, o bem e o mal
Ardiam no meu orco
cerebral,
Numa crepitação
própria de incêndio!
Em contraposição
à paz funérea,
Doía
profundamente no meu crânio
Esse
funcionamento simultâneo
De todos os
conflitos da matéria!
Eu, perdido no
Cosmos, me tornara
A assembléia
belígera malsã,
Onde Ormuzd
guerreava com Arimã,
Na discórdia
perpétua do sansara!
Já me fazia medo
aquela viagem
A carregar pelas
ladeiras tétricas,
Na óssea armação
das vértebras simétricas
A angústia da
biológica engrenagem!
No Céu, de onde
se vê o Homem de rastros,
Brilhava,
vingadora, a esclarecer
As manchas
subjetivas do meu ser
A espionagem
fatídica dos astros!
Sentinelas de
espíritos e estradas,
Noite alta, com
a sidérica lanterna,
Eles entravam
todos na caverna
Das consciências
humanas mais fechadas!
Ao castigo
daquela rutilância,
Maior que o
olhar que perseguiu Caim,
Cumpria-se
afinal dentro de mim
O próprio
sofrimento da Substância!
Como quem traz
ao dorso muitas cargas
Eu sofria, ao
colher simples gardênia,
A multiplicação
heterogênea
De sensações diversamente
amargas.
Mas das árvores,
frias como lousas,
Fluía, horrenda
e monótona, uma voz
Tão grande, tão
profunda, tão feroz
Que parecia vir
da alma das cousas:
“Se todos os
fenômenos complexos,
Desde a
consciência à antítese dos sexos
Vêm de um dínamo
fluídico de gás,
Se hoje,
obscuro, amanhã píncaros galgas,
A humildade
botânica das algas
De que grandeza
não será capaz?!
Quem sabe,
enquanto Deus, Jeová ou Siva
Oculta à tua
força cognitiva
Fenomenalidades
que hão de vir,
Se a contração
que hoje produz o choro
Não há de ser no
século vindouro
Um simples
movimento para rir?!
Que espécies
outras, do Equador aos pólos,
Na prisão
milenária dos subsolos,
Rasgando
avidamente o húmus malsão,
Não trabalham,
com a febre mais bravia,
Para erguer, na
ânsia cósmica, a Energia
À última etapa
da objetivação?!
É inútil, pois,
que, a espiar enigmas, entres
Na química
genésica dos ventres,
Porque em todas
as coisas, afinal,
Crânio, ovário,
montanha, árvore, iceberg,
Tragicamente,
diante do Homem, se ergue
A esfinge do
Mistério Universal!
A própria força
em que teu Ser se expande,
Para esconder-se nessa esfinge grande,
Deu-te (oh!
mistério que se não traduz!)
Neste astro ruim
de tênebras e abrolhos
A efeméride
orgânica dos olhos
E o simulacro
atordoador da Luz!
Por isto, oh!
filho dos terráqueos limos,
Nós, arvoredos
desterrados, rimos
Das vãs
diatribes com que aturdes o ar...
Rimos, isto é,
choramos, porque, em suma,
Rir da desgraça
que de ti ressuma
É quase a mesma
coisa que chorar!”
Às vibrações
daquele horrível carme
Meu dispêndio
nervoso era tamanho
Que eu sentia no
corpo um vácuo estranho
Como uma boca
sôfrega a esvaziar-me!
Na avan çada
epilética dos medos
Cria ouvir, a
escalar Céus e apogues,
A voz
cavernosíssima de Deus,
Reproduzida
pelos arvoredos!
Agora, astro
decrépito, em destroços,
Eu,
desgraçadamente magro, a eguer-me,
Tinha
necessidade de esconder-me
Longe da espécie
humana, com os meus ossos!
Restava apenas
na minha alma bruta
Onde frutificara
outrora o Amor
Uma volicional
fome interior
De renúncia
budística absoluta!
Porque, naquela
noite de ânsia e inferno,
Eu fora, alheio
ao mundanário ruído,
A maior
expressão do homem vencido
Diante da sombra
do Mistério Eterno!
A noite
A nebulosidade
ameaçadora
Tolda o éter,
mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas
teias de carvões sombrios
No ar que álacre
e radiante, há instantes, fora.
A água
transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do
oceano e entre os navios
Troa bárbara
zoada de ais bravios,
Extraordinariamente
atordoadora.
À custódia do
anímico registro
A planetária
escuridão se anexa...
Somente, iguais
a espiões que acordam cedo,
Ficam brilhando
com fulgor sinistro
Dentro da treva
onímoda e complexa
Os olhos fundos
dos que estão com medo!
A obsessão do
sangue
Acordou, vendo
sangue... Horrível! O osso
Frontal em
fogo... Ia talvez morrer,
Disse. Olhou-se
no espelho. Era tão moço,
Ah! Certamente
não podia ser!
Levantou-se. E,
eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros,
a escorrer
Fita rubra de
sangue muito grosso,
A carne que ele
havia de comer!
No inferno da
visão alucianada,
Viu montanhas de
sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras
vermelhas pelo chão...
E amou, com um
berro bárbaro de gozo,
O monocromatismo
monstruoso
Daquela
universal vermelhidão!
Vox victimae
Morto!
Consciência quieta haja o assassino
Que me acabou,
dando-me ao corpo vão
Esta volúpia de
ficar no chão
Fruindo na
tabidez sabor divino!
Espiando o meu
cadáver ressupino,
No mar da humana
proliferação,
Outras cabe;as
aparecerão
Para
compartilhar do meu destino!
Na festa
genetlíaca do Nada,
Abraço-me com a
terra atormentada
Em contubérnio
convulsionador...
E ai! Como é boa
esta volúpia obscura
Que une os ossos
cansados da criatura
Ao corpo
ubiqüitário do Criador!
O último número
Hora da minha
morte. Hirta, ao meu lado,
A Idéia
estertorava-se... No fundo
Do meu
entendimento moribundo
Jazia o Último
Número cansado.
Era de vê-lo,
imóvel, resignado,
Tragicamente de
si mesmo oriundo,
Fora da
sucessão, estranho ao mundo,
Com o reflexo
fúnebre do Incriado:
Bradei: -- Que
fazes ainda no meu crânio?
E o Último
Número, atro e subterrâneo,
Parecia
dizer-me: “É tarde, amigo!
Pois que a minha
antogênica Grandeza
Nunca vibrou em
tua língua presa,
Não te abandono
mais! Morro contigo!”
Mágoas
Quando nasci,
num mês de tantas flores,
Todas murcharam,
tristes, langorosas,
Tristes fanaram
redolentes rosas,
Morreram todas,
todas sem olores.
Mais tarde da
existência nos verdores
Da infância
nunca tive as venturosas
Alegrias que
passam bonançosas,
Oh! Minha
infância nunca tive flores!
Volvendo à
quadra azul da mocidade,
Minh’alma levo
aflita à Eternidade,
Quando a morte
matar meus dissabores.
Cansado de chorar
pelas estradas,
Exausto de pisar
mágoas pisadas,
Hoje eu carrego
a cruz de minhas dores!
O condenado
Folga a Justica
e Geme a natureza
Bocage
Alma feita
somente de granito,
Condenada a
sofrer cruel tortura
Pela rua sombria
d’amargura
-- Ei-lo que
passa -- réprobo maldito.
Olhar ao chão
cravado e sempre fito,
Parece
contemplar a sepultura
Das suas ilusões
que a desventura
Desfez em pó no
hórrido delito.
E, à cruz da
expiação subindo mudo,
A vida a lhe
fugir já sente prestes
Quando ao golpe
do algoz, calou-se tudo.
O mundo é um
sepulcro de tristeza.
Ali, por entre
matas de ciprestes,
Folga a justiça
e geme a natureza.
Soneto
Ouvi. snhora, o
cântico sentido
Do coração que
geme e s’estertora
N’ânsia letal
que mata e que o devora
E que tornou-o
assim, triste e descrido.
Ouvi, senhora,
amei; de amor ferido,
As minhas
crenças que alentei outrora
Rolam dispersas,
pálidas agora,
Desfeitas todas
num guaiar dorido.
E como a luz do
sol vai-se apagando!
E eu tiste,
triste pela vida afora,
Eterno pegureiro
caminhando.
Revolvo as
cinzas de passadas eras,
Sombrio e mudo e
glacial, senhora,
Como um coveiro
a sepultar quimeras!
Infeliz
Alma viúva das
paixões da vida,
Tu que, na
estrada da existência em fora,
Cantaste e
riste, e na existência agora
Triste soluças a
ilusão perdida;
OH! tu, que na
grinalda emurchecida
De teu passado
de felicidade
Foste juntar os
goivos da Saudade
Às flores da
Esperança enlanguescida;
Se nada te
aniquila o desalento
Que te invade, e
pesar negro e profundo,
Esconde à
Natureza o sofrimento,
E fica no teu
ermo entristecida,
Alma arrancada
do prazer do mundo,
Alma viúva das
paixões da vida.
Soneto
N’augusta
solidão dos cemitérios,
Resvalando nas
sombras dos ciprestes,
Passam meus
sonhos sepultados nestes
Brancos
sepulcros, pálidos, funéreos.
São minhas
crenças divinais, ardentes
-- Alvos
fantasmas pelos merencórios
Túmulos tristes,
soturnais, silentes,
Hoje rolando nos
umbrais marmóreos,
Quando da vida,
no eternal soluço,
Eu choro e gemo
e triste me debruço
Na laje fria dos
meus sonhos pulcros,
Desliza então a
lúgubre cooorte.
E rompe a
orquestra sepulcral da morte,
Quebrando a paz
suprema dos sepulcros.
Noivado
Os namorados
ternos suspiravam,
Quando há de ser
o venturoso dia?!
Quando há de
ser?! O noivo então dizia
E a noiva e
ambos d’amores s’embriagavam.
E a mesma frase
o noivo repetia;
Fora no campo
pássaros trinavam.
Quando há de
ser?! E os pássaros falavam,
Há de chegar, a
brisa respondia.
Vinha rompendo a
aurora majestosa,
Dos rouxinóis ao
sonoroso arpejo
E a luz do sol
vibrava esplendorosa.
Chegara enfim o
dia desejado,
Ambos unidos,
soluçara um beijo,
Era o supremo
beijo de noivado!
Soneto
No meu peito
arde em chamas abrasada
A pira da
vingança reprimida,
E em centelhas
de raiva ensurdecida
A vingança
suprema e concentrada
E espuma e ruge
a cólera entranhada,
Como no mar a
vaga embravecida
Vai bater-se na
rocha empedernida,
Espumando e rugindo
em marulhada
Mas se das
minhas dores ao calvário,
Eu subo na
altitude dolorida
De um Cristo a
redimir um mundo vário,
Em luta co’a
natura sempiterna,
Já que do mundo
não vinguei-me em vida,
A morte me será
vingança eterna.
Triste regresso
A Dias Paredes
Uma vez um
poeta, um tresloucado,
Apaixonou-se
d’uma virgem bela;
Vivia alegre o
vate apaixonado,
Louco vivia,
enamorado dela.
Mas a Pátria
chamou-o. Era soldado.
E tinha que deixar pra sempre aquela
Meiga visão, olímpica
e singela?!
E partiu,
coração amargurado.
Dos canhões ao
ribombo, e das metralhas,
Altivo lutador,
venceu batalhas,
Juncou-lhe a
fronte aurifulgente estrela.
E voltou, mas a
fronte aureolada,
Ao chegar,
pendeu triste e desmaiada,
No sepulcro da
loura virgem bela.
Amor e religião
Conheci-o: era
um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé
de crença pura,
Da sua fala na
eternal doçura
Falava o
coração. Quantos, oh! Quantos
Ouviram dele
frases de candura
Que d’infelizes
enxugavam prantos!
E como alegres
não ficaram tantos
Corações sem
prazer e sem ventura.
No entanto dizem
que este padre amara.
Morrera um dia
desvairado, estulto,
Su’alma livre
para o céu se alara.
E Deus lhe
disse: “És duas vezes santo,
Pois se da
Religião fizeste culto,
Foste do amor o
mártir sacrossanto”.
Soneto
Ao meu prezado
irmão Alexandre Júnior
pelas nove
primaveras que hoje completou.
Canta no espaço
a passarada e canta
Dentro do peito
o coração contente,
Tu’alma ri-se
descuidosamente,
Minh’alma alegre
no teu rir s’encanta.
Irmão querido,
bom Pap[a, consente
Que neste dia de
ventura tanta
Vá, num abraço
de ternura santa,
Mostrar-te o
afeto que meu peito sente.
Somente assim
festejarei teus anos;
Enquanto outros
podem, dão-te enganos,
Jóias, bonecos
de formoso busto,
Eu só encontro
no primor da rima
A justa oferta,
a jóia que te exprima
O amor fraterno
do teu mano.
Saudade
Hoje que a mágoa
me apunhala o seio,
E o coração me
rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da
descrença em meio,
Porque eu hoje
só vivo da descrença.
À noite quando
em funda soledade
Minh’alma se
recolhe tristemente,
Pra iluminar-me
a alma descontente,
Se acende o
círio triste da Saudade.
E assim afeito
às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao
sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à
dor e ao sofrimento,
Da saudade na
campa enegrecida
Guardo a
lembrança que me snagra o peito,
Mas que no
entanto me alimenta a vida.
A esmola de
Dulce
Ao Alfredo A.
E todo o dia eu
vou como um perdido
De dor, por
entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a
minha bem amada
A esmola dum
carinho apetecido.
E ela fita-me, o
olhar enlanguescido,
E eu balbucio
trêmula balada:
-- Senhora
dai-me u’ma esmola -- e estertorada
A minha voz
soluça num gemido.
Morre-me a voz,
e eu gemo o último arpejo,
Estendendo à
Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de
Dulce cai um beijo.
Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a
Dulce! A minha vida
Estava
unicamente nessa esmola.
Soneto
Gênio das trevas
lúgubres, acolhe-me,
Leva-me o
esp’rito dessa luz que mata,
E a alma me
ofusca e o peito me maltrata,
E o viver calmo
e sossegado tolhe-me!
Leva-me,
obumbra-me em teu seio, acolhe-me
N’asa da Morte
redentora, e à ingrata
Luz deste mundo
em breve me arrebata
E num pallium
de tênebras recolhe-me!
Aqui há muita
luz e muita aurora,
Há perfumes
d’amor -- venenos d’alma --
E eu busco a
plaga onde o repouso mora,
E as trevas
moram, e, onde d’água raso
O olhar não
trago, nem me turba a calma
A aurora deste
amor que é o meu ocaso!
O mar
O mar é triste
como um cemitério;
Cada rocha é uma
eterna sepultura
Banhada pela
imácula brancura
De ondas
chorando num alvor etéreo.
Ah! dessas vagas
no bramir funéreo
Jamais vibrou a
sinfonia pura
Do Amor; lá, só
descanta, dentre a escura
Treva do oceano,
a voz do meu saltério!
Quando a cândida
espuma dessas vagas,
Banhando a fria
solidão das fragas,
Onde a
quebrar-se tão fugaz se esfuma,
Reflete a luz do
sol que já não arde,
Treme na treva a
púrpura da tarde,
Chora a Saudade
envolta nesta espuma!
Soneto
Aurora morta,
foge! Eu busco a virgem loura
Que fugiu-me do
peito ao teu clarão de morte
E Ela era a
minha estrela, o meu único Norte,
O grande Sol de
afeto -- o Sol que as almas doura!
Fugiu... E em si
levou a Luz consoladora
Do amor -- esse
clarão eterno d’alma forte --
Astro da minha
Paz, Sírius da minha Sorte
E da Noite da
vida a Vênus redentora.
Agora, oh! minha
Mágoa, agita as tuas asas,
Vem! Rasga deste
peito as nebulosas gazas
E, num pálio
auroral de Luz deslumbradora,
Ascende à
Claridade. Adeus oh! Dia escuro,
Dia do meu
Passado! Irrompe, meu Futuro;
Aurora morta,
foge -- eu busco a virgem loura!
Soneto
Canta teu riso
esplêndido sonata,
E há, no teu
riso de anjos encantados,
Como que um doce
tilintar de prata
E a vibração de
mil cristais quebrados.
Bendito o riso
assim que se desata
-- Cítara suave
dos apaixonados,
Sonorizando os
sonhos já passados,
Cantando sempre
em trínula volata!
Aurora ideal dos
dias meus risonhos,
Quando, úmido de
beijos em ressábios
Teu riso
esponta, despertando sonhos...
Ah! Num delíquio
de ventura louca,
Vai-se minh’alma
toda nos teus beijos,
Ri-se o meu
coração na tua boca!
Cravo de noiva
Ao Dias Paredes
Cravo de noiva.
A nívea cor de cera
Que o seu seio
branqueja, é como os prantos
Níveos, que a
virgem chora, entre os encantos
Dum noivado
risonho em primavera.
Flor de
mistérios d’alma, sacrossantos,
Guarda segredos
divinais que eu dera
Duas vidas, se
duas eu tivera
Pra desvendar os
seus segredos santos.
E tudo quer que
nessa flor se enleve
O poeta. É que
dessa concha armínea,
Da lactescência
angélica da neve,
Se evolam
castos, virginais aromas
De essência
estranha; olências de virgínea
Carne fremindo
num langor de pomas.
Plenilúnio
Desmaia o
plenilúnio. A gaze pálida
Que lhe serve de
alvíssimo sudário
Respira
essências raras, toda a cáida
Mística essência
desse alampadário.
E a lua é como
um pálido sacrário,
Onde as almas
das virgens em crisálida
De seios alvos e
de fronte pálida,
Derramam a urna
dum perfume vário.
Voga a lua na
etérea imensidade!
Ela, eterna
noctâmbula do Amor,
Eu, noctâmbulo
da Dor e da Saudade.
Ah! Como a
branca e merencória lua,
Também envolta
num sudário -- a Dor,
Minh’alma triste
pelos céus flutua!
Cítara mística
Cantas... E eu
ouço etérea cavatina!
Há nos teus
lábios -- dois sangrentos círios --
A gêmea
florescência de dois lírios
Entrelaçados
numa unção divina.
Como o santo
levita dos Martírios,
Rendo piedosa
dúlia peregrina
À tua doce voz
que me fascina,
-- Harpa virgem
brandindo mil delírios!
Quedo-me aos
poucos, penseroso e pasmo,
E a Noite afeia
como num sarcasmo
E agora a sombra
versperal morreu...
Chegou a
Noite... E para mim, meu anjo,
Teu canto agora
é um salmodiar de arcanjo,
É a música de
Deus que vem do Céu!
Súplica num
túmulo
Maria, eis-me a
tues pés. Eu venho arrependido,
Implorar-te o
perdão do imenso crime meu!
Eis-me, pois, a
teus pés, perdoa o teu vencido,
Açucena de Deus,
lírio morto do Céu!
Perdão! E a
minha voz estertora um gemido,
E o lábio meu
para sempre apartado do tue
Não há de beijar
mais o teu lábio querido!
Ah! Quando tu
morreste, o meu Sonho morreu!
Perdão, pátria
da Aurora exilada do Sonho!
-- Irei agora,
assim, pelo mundo, para onde
Me levar o
Destino abatido e tristonho...
Perdão! E este
silêncio e esta tumba que cala!
Insânia,
insânia, insânia, ah! ninguém me responde...
Perdão! E este
sepulcro imenso que não fala!
Afetos
Bendito o amor
que infiltra n’alma o enleio
E santifica da
existência o cado,
-- Amor que é
mirra e que é sagrado nardo,
Turificando a
languidez dum seio!
O amor, porém,
que da Desgraça veio
Maldito seja,
seja como o fardo
Desta descrença
funeral em que ardo
E com que o fogo
da paixão ateio!
Funambulescamente
a alma se atira
À luta das
paixões, e, como a Aurora
Que ao beijo
vesperal anseia e expira,
Desce para a
alma o ocaso da Carícia
Ora em sonhos de
Dor, supremos, e ora
Em contorções
supremas de Delícia!
Martírio supremo
Duma Quimera ao
fascinante abraço,
Por um Cocito
ardente e luxurioso,
Onde nunca gemeu
o humano passo,
Transpus um dia
o Inferno Azul do Gozo!
O amor em lavas
de candência d’aço,
Banhou-me o
peito... Em ânsia de repouso,
Da Messalina
fria no regaço,
Chora saudades
do terreno pouso!
Como um mártir
de estranho sacrifício,
Tinha os lábios
crestados pela ardência
Da luz letal do
grande Sol do Vício!
E mergulhei mais
fundo no estuário...
Mas, no Inferno
do Gozo, sem Calvário,
Cristo d’amor
morri pela inocência!
Régio
Festa no paço!
Noite... E no entretanto
Luzes, flores,
clarões por toda a festa
E há nos régios
salões, em cada aresta,
Credências
d’ouro de supremo encanto.
No baldaquino a
orquestra real se apresta
E o áureo dossel
finge um relevo santo...
-- Bissos
egípcios d’alto gosto, a um canto,
Flordilisados de
nelumbo e giesta.
Morreu a noite e
veio o Sol Eterno
-- Âmbar de
sangue que desceu do Inferno
No turbilhão dos
alvos raios diurnos...
Brilham no paço
refulgências de elmo
E a princesa
assomou como um santelmo
Na realeza
branca dos coturnos.
Mártir da fome
Nesta da vida
lúgubre caverna
De ossos e frios
funerais que eu sinto
Como um chacal
saciando o eterno instinto
Vou saciando a
minha Fome Eterna.
-- Fomoe de
sangue de um Passado extinto,
De extintas
crenças -- bacanal superna,
Horrível assim
como a Hidra de Lerna
E muda como o
bronze de Corinto!
Ânsias de
sonhos, desespero fundo!
E a alma que
sonha no marnel do Mundo,
Morre de Fome
pelas noites belas...
E como o Cristo -- o Mártir do Calvário
Morre. E no
entanto vai para o estelário
Matar a Fome num
festim de estrelas!
Festival
Para Jônatas
Costa
Címbalos soam no
salão. O dia
Foge, e ao
compasso de arrabis serenos
A valsa rompe,
em compassados trenos
Sobre os veludos
da tapeçaria.
Estatuetas de
mármore de Lemnos
Estão dispostas
numa simetria
Inconfundível,
recordando a estria
Dos corpos de
Afrodite e Vênus.
Fulgem por entre
mil cristais vermelhos
O alvo cristal dos
nítidos espelhos
E a seda verde
dos arbustos glabros.
E em meio às
refrações verdes e hialinas,
Vibra, batendo
em todas as retinas,
A incandescência
irial dos candelabros.
Noturno
Chove. Lá fora
os lampiões escuros
Semelham monjas
a morrer... Os ventos,
Desencadeados,
vão bater, violentos,
De encontro às
torres e de encontro aos muros.
Saio de casa. Os
passos mal seguros
Trêmulo movo,
mas meus movimentos
Susto, diante do
vulto dos conventos,
Negro, ameaçando
os séculos futuros!
De São Francisco
no plangente bronze
Em badaladas
compassadas onze
Horas soaram...
Surge agora a Lua.
E eu sonho
erguer-me aos páramos etéreos
Enquanto a chuva
cai nos cemitérios
E o vento apaga
os lampiões da rua!
Soneto
(Feito no
decurso de dois minutos, em homenagem ao aniversário
natalício de
Alexandre Rodrigues dos Anjos -- 28 de abril de 1905.)
Para quem tem na
vida compreendido
Toda a grandeza
da Fraternidade
O aniversário
dum irmão querido
A alma de
alegres emoções invade.
Depois quando no
irmão estremecido
Fazem aliança o
gênio e a probidade,
Atinge o amor um
grau nunca atingido
No termômetro
santo da Amizade.
O Alexandre dos
Anjos merecia
Grandes coroas
nesse grande dia,
Tesouros reais,
auríferos tesouros...
Terá no entanto
indubitavelmente
A admiração do
século presente
E a sagração dos
séculos vindouros!
O negro
Oh! Negro, oh!
Filho da Hotentóia ufana
Teus braços
brônzeos como dois escudos,
São dois
colossos, dois gigantes mudos,
Representando a
integridade humana!
Nesses braços de
força soberana
Gloriosamente à
luz do sol desnudos
Ao bruto
encontro dos ferrões agudos
Gemeu por muito
tempo a alma africana!
No colorido dos
teus brônzeos braços,
Fulge o fogo
mordente dos mormaços
E a chama fulge
do solar brasido...
E eu cuido ver
os múltiplos produtos
Da Terra -- as
flores e os metais e os frutos
Simbolizados
nesse colorido!
Senectude
precoce
Envelheci. A cal
da sepultura
Caiu por sobre a
minha mocidade...
E eu que julgava
em minha idealidade
Ver inda toda a
geração futura!
Eu que julgava!
Pois não é verdade?!
Hoje estou
velho. Olha essa neve pura!
-- Foi saudade?
Foi dor? -- Foi tanta agrura
Que eu nem sei
se foi dor ou foi saudade!
Sei que durante
toda a travessia
Da minha infância
trágica, vivia,
Assim como uma
casa abandonada.
Vinte e quatro
anos em vinte e quatro horas...
Sei que na
infância nunca tive auroras,
E afora disto,
eu já nem sei mais nada!
André Chénier
Na real
magnificência dos gigantes
Grave como um
lacedemônio harmoste
André Chénier ia
subir ao poste
A que Luís XVI
subira dantes!
Que a sua morte
a homem nenhum desgoste
E incite o
heroísmo das nações distantes!...
Por isso, ele, a
morrer, canta vibrantes
Versos divinos
que arrebatam a hoste.
Não há quem nele
um só tremor denote!
-- Continua a
cantar, a alma serena...
Mas, de repente,
pressentindo a lousa,
Batendo com a
cabeça no barrote
Da guilhotina,
diz ao povo: -- “É pena!
-- Aqui ainda
havia alguma cousa...”
Mystica visio
Vinha passando
pelo meu caminho
Um vulto
estranhamente iluminado...
Para onde eu ia,
o vulto ia a meu lado
E desde então,
não andei mais sozinho!
Abraçou-me,
beijou-me com um carinho
Que a um ser
divino não seria dado...
E eu me elevava,
sendo assim beijado
Muito acima do
humano burburinho!
Falou-me de
ilusões e de luares,
Da tribo alegre
que povoa os ares...
-- Assombrava-me
aquela claridade!
Mas através
daquelas falsas luzes
Pude rever enfim
todas as cruzes
Que têm pesado
sobre a Humanidade!
Ilusão
Dizes que sou
feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes.
A infelicidade
Parece às vezes
com a felicidade
E os infelizes
mostram ser felizes!
Assim, em Tebas
-- a tumbal cidade,
A múmia de um
herói do tempo de Ísis,
Ostenta ainda as
mesmas cicatrizes
Que eternizaram
sua heroicidade!
Quem vê o herói,
inda com o braço altivo,
Diz que ele não
morreu, diz que ele é vivo,
E, persuadido
fica do que diz...
Bem como tu, que
nessa crença infinda
Feliz me viste
no Passado, e a inda
Te persuades de
que sou feliz!
Gozo
insatisfeito
Entre o gozo que
aspiro, e o sofrimento
De minha
mocidade, experimento
O mais profundo
e abalador atrito...
Queimam-me o
peito cáusticos de fogo
Esta ânsia de
absoluto desafogo
Abrange todo o
círculo infinito.
Na insaciedade
desse gozo falho
Busco no
desespero do trabalho,
Sem um domingo
ao menos de repouso,
Fazer parar a
máquina do instinto,
Mas, quanto mais
me desespero, sinto
A
insaciabilidade desse gozo!
Dolências
Oh! Lua morta de
minha vida,
Os sonhos meus
Em vão te
buscam, andas perdida
E eu ando em
busca dos rastos teus...
Vago sem
crenças, vagas sem norte,
Cheia de brumas
e enegrecida,
Ah! Se morreste
pra minha vida!
Vive, consolo de
minha morte!
Baixa, portanto,
coração ermo
De lua fria
À plaga triste,
plaga sombria
Dessa dor lenta
que não tem termo.
Tu que tombaste
no caos extremo
Da Noite imensa
do meu Passado,
Sabes da
angústia do torturado...
Ah! Tu bem sabes
por que é que eu gemo!
Instilo mágoas saudoso,
e enquanto
Planto saudades
num campo morto,
Ninguém ao menos
dá-me um conforto,
Um só ao menos!
E no entretanto
Ninguém me
chora! Ah! Se eu tombar
Cedo na lida...
Oh! Lua fria vem
me chorar
Oh! Lua morta da
minha vida!
Idealizações
A Santos Neto
I
Em vão flameja,
rubro, ígneo, sangrento
O sol, e,
fulvos, aos astrais desígnios,
Raios flamejam e
fuzilam ígneos,
Nas chispas
fulvas de um vulcão violento!
É tudo em vão!
Atrás da luz dourada,
Negras, pompeiam
(triste maldição!)
-- Asas de corvo
pelo coração...
-- Crepúsculo
fatal vindo do Nada!
Que importa o
Sol! A Treva, a Sombra -- eis tudo!
E no meu peito
-- condenada treva --
A sombra desce,
e o meu pesar se eleva
E chora e
sangra, mudo, mudo, mudo...
E há no mei
peito -- ocaso nunca visto,
Martirizado
porque nunca dorme
As Sete Chagas
dum martírio enorme,
E os Sete Passos
que magoaram Cristo!
II
Agora dorme o
astro de sangue e de ouro
Como um sultão
cansado! As nuvens como
Odaliscas, da
Noite ao negro assomo
Beijam-lhe o
corpo ensangüentado d’ouro.
Legiões de
névoas mortas e finadas
Como
fragmentações d’ouro e basalto
Lembram
guirlandas pompeando no Alto
Eterizadas,
volaterizadas.
E a Noite
emerge, santa e vitoriosa
Dente um velarium
de veludos. Atros,
Descem os
nimbos... No ar há malabatros
Turiferando a
negridão tediosa.
Além, dourando
as névoas dos espaços,
Na majestade dum
condor bendito,
Subindo à
majestade do Infinito,
A Via-Láctea vai
abrindo os braços!
Áureas estrelas,
alvas, luminosas,
Trazem no peito
o branco das manhãs
E dormem brancas
como leviatãos
Sobre o oceano
astral das nebulosas.
Eu amo a noite
que este Sol arranca!
Namoro
estrelas... Sírius me deslumbra,
Vésper me
encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial
da Noite Branca.
III
De novo, a
Aurora, entre esplendores, há-de
Alva, se erguer,
como tombou outrora,
E como a Aurora
-- o Sol -- hóstia da Aurora,
Abençoada pela
Eternidade!
E ei-lo de novo,
ontem moribundo,
Hoje de novo,
curvo ao seu destino,
Fantástico,
ciclópico, assassino
Ébrio de fogo,
dominando o mundo!
Mas de que serve
o Sol, se triste em cada
Raio que tomba
no marnel da terra,
Mais em meu
peito uma ilusão se enterra,
Mais em
minh’alma um desespero brada?!
De que serve, se,
à luz áurea que dele
Emana e estua e
se refrange e ferve,
A Mágoa ferve e
estua, de que serve
Se é desespero e
maldição todo ele?!
Pois, de que
serve, se aclarandoos cerros
E engalanando os
arvoredos gaios,
A alma se abate,
como se esses raios
N’alma caindo,
se tornassem ferros?!
IV
Poeta, em vão na
luz do sol te inflamas,
E nessa luz
queimas-te em vão! És todo
Pó, e hás de ser
após as chamas, lodo,
Como Herculanum
foi após as chamas.
Ah! Como tu, em
lodo tudo acaba,
O leão, o tigre,
o mastodonte, a lesma,
Tudo por fim há
de acabar na mesma
Tênebra que hoje
sobre ti desaba.
Ninguém se exime
dessa lei imensa
Que, em plena e
fulva reverberação,
Arrasta as almas
pela Escuridão,
E arrasta os
corações pela Descrença.
Ergue, pois
poeta, um pedestal de tanta
Treva e dor
tanta, e num supremo e insano
E extraordinário
e grande e sobre-humano
Esforço, sobre
ao pedestal, e... canta!
Canta a
Descrença que passou cortanto
As tuas ilusões
pelas raízes,
E em vez de
chagas e de cicatrizes
Deixar, foi
valas funerais deixando.
E foi deixando
essas funéreas, frias,
Medonhas valas,
onde, como abutres
Medonhos, de
ossos, de ilusões te nutres,
Vives de cinzas
e de ruinarias!
V
Agora é noite! E
na estelar coorte,
Como recordação
da festa diurna,
Geme a pungente
orquestração noturna
E chora a
fanfarra triunfal da Morte.
Então, a Lua que
no céu se espalha,
Iluminando as
serranias, banha
As serranias
duma luz estranha,
Alva como um
pedaço de mortalha!
Nessa música que
a alma me ilumina
Tento esquecer
as minhas próprias dores,
Canto, e
minh’alma cobre-se de flores
-- Fera rendida
à música divina.
Harpas
concertam! Brandas melodias
Plangem...
Silêncio! Mas de novo as harpas
Reboam pelo mar,
pelas escarpas,
Pelos rochedos,
pelas penedias...
Eu amo a Noite
que este Sol arranca!
Namoro
estrelas... Sírius me deslumbra,
Vésper me
encanta, e eu beijo na penumbra
A imagem lirial
da Noite Branca!
A vitória do
espírito
Era uma preta,
funeral mesquita,
Abandonada aos
lobos e aos leopardos
Numa floresta
lúgubre e esquisita.
Engalanava-lhe
as paredes frias
Uma coroa de
urzes e de cardos
Coberta em pálio
pelas laçarias.
Uma vez, aos
lampejos derradeiros
Das irisadas
vespertinas velas,
Feras rompiam
tojos e balseiros.
E pelas
catacumbas desprezadas,
Mochos vagavam
como sentinelas,
Em atalaia às
gerações passadas!
Um crepúsculo
imenso, nunca visto
Tauxiava o Céu
de grandes roxos
Da mesma cor da
túnica de Cristo.
Fulgia em tudo
uma estriação violeta
E um violáceo
clarão banhava os mochos
Quem em torno
estavam da mesquita preta.
Já na eminência
da amplidão sidérea
Como uma umbela,
se desenrolava
A esteira astral
da retração etérea.
Os astros mortos
refulgiam vivos
E a noite, ampla
e brilhante, rutilava
Lantejoulada de
opalinos crivos.
Súbito alguém, o
passo constrangendo,
Parou em frente da mesquita morta...
-- Um vento frio
começou gemendo.
Era uma viúva, e
o olhar errante, a viúva,
Em passo lento,
foi transpondo a porta,
Eternamente
aberta ao sol e à chuva.
A Lua encheu o
espaço sem limites
E, dentro, nos
altares esboroados,
Foram caindo
como estalactites.
Sobre o ouro e a
prata das alfaias priscas
Um dilúvio de
fósforos prateados
E uma chuva
doirada de faíscas.
Fora,
entretanto, por um chão de onagras
Vinha passeando
como numa viagem
Um grupo feio de
panteras magras.
E havia no atro
olhar dessas panteras
Essa alegria
doida da carnagem
Que é a alegria
única das feras.
E ardendo na
impulsão das ânsias doidas
E em sevas
fúrias, infernais ardendo
Todas as feras,
as panteras todas
Avançam para a
viúva desvalida.
E raivosas,
contra ela, arremetendo,
Tiram-lhe todas
ali mesmo a vida.
Morria a noite.
As flâmulas altivas
Do sol nascente
erguiam-se vermelhas,
Comouma
exposição de carnes vivas.
E iam cair em
pérolas de sangue
Sobre as asas
doiradas das abelhas,
E sobre o corpo
da viúva exangue.
A Natureza
celebrava a festa
Do astro
glorioso em cantos e baladas
-- O próprio
Deus cantava na floresta!
Nos arvoredos
rejuvenescidos,
Estrugiam
canções desesperadas
De misereres e
de sustenidos.
Além, entanto,
na redoma clara
Que envolve a
porta da região etérea,
O espírito da
viúva se quedara
Ao contemplar
dessa fulgente porta
E dessa clara e
alva redoma aérea,
No desfilar de
sua carne morta
A
transitoriedade da matéria!
Canto íntimo
Meu amor, em
sonhos erra,
Muito longe,
altivo e ufano
Do barulho do
oceano
E do gemido da
terra!
O Sol está
moribundo.
Um grande
recolhimento
Preside neste
momento
Todas as forças
do Mundo.
De lá, dos
grandes espaços,
Onde há sonhos
inefáveis
Vejo os vermes
miseráveis
Que hão de comer
os meus braços.
Ah! Se me
ouvisses falando!
(E eu sei que às
dores resistes)
Dir-te-ia coisas
tão tristes
Que acabarias
chorando.
Que mal o amor
me tem feito!
Duvidas?! Pois,
se duvidas,
Vem cá, olha
estas feridas,
Que o amor abriu
no meu peito.
Passo longos
dias, a esmo...
Não me queixo
mais da sort
Nem tenho medo
da Morte
Que eu tenho a
Morte em mim mesmo!
“Meu amor, em
sonhos, erra,
Muito longe,
altivo e ufano
Do barulho do
oceano
E do gemido da
terra!”
A luva
Para o Augusto
Belmont
Pansa na glória!
Arfa-lhe o peito, opresso.
-- O pensamento
é uma locomotiva --
Tem a grandeza
duma força viva
Correndo sem
cessar para o Progresso.
Que importa que,
contra ele, horrendo e preto
O áspide bjeto
do Pesar se mova!...
E só, no
quadrilátero da alcova,
Vem-lhe à
imaginação este soneto:
“A princípio
escrevia simplesmente
Para entreter o
espírito... Escrevia
Mais por impulso
de idiossincrasia
Do que por uma
propulsão consciente.
Entendi, depois
disso, que devia,
Como Vulcano,
sobre a forja ardente
Da Ilha de
Lemnos, trabalhar contente,
Durante as vinte
e quatro horas do dia!
Riam de mim, os
monstros zombeteiros,
Trabalharei
assim dias inteiros,
Sem ter uma alma
só que me idolatre...
Tenha a sorte de
Cícero proscrito
Ou morra embora,
trágico e maldito,
Como Camões
morrendo sobre um catre!”
Nisto, abre, em
ânsias, a tumbal janela
E diz, olhando o
céu que além se expande:
“-- A maldade do
mundo é muito grande,
Mas meu orgulho
ainda é maior do que ela!
Ruja a boca
danada da profana
Coorte dos
homens, com o seu grande grito,
Que meu orgulho
do alto do Infinito
Suplantará a
própria espécie humana!
Quebro montanhas
e aos tufões resisto
Numa absoluta
impassibilidade”,
E como um
desafio à eternidade
Atira a luva
para o próprio Cristo!
Chove. Sobre a
cidade geme a chuva,
Batem-lhe os
nervos, sacudindo-o todo,
E na suprema
convulsão o doudo
Parece aos
astros atirar a luva!
A caridade
No universo a
caridade
Em contraste ao
vício infando
É como um astro
brilhando
Sobre a dor da
humanidade!
Nos mais
sombrios horrores
Por entre a
mágoa nefasta
A caridade se
arrasta
Toda coberta de
flores!
Semeadora de
carinhos
Ela abre todas
as portas
E no horror das
horas mortas
Vem beijar os
pobrezinhos.
Torna as
tormentas mais calmas
Ouve o soluço do
mundo
E dentro do amor
profundo
Abrange todas as
almas.
O céu de
estrelas se veste
Em fluidos de
misticismo
Vibra no nosso
organismo
Um sentimento
celeste.
A alegria mais
acesa
Nossas cabeças
invade...
Glória, pois, à
Caridade
No seio da
Natureza!
Estribilho
Cantemos todos
os anos
Na festa da
Caridade
A solidariedade
Dos sentimentos
humanos.
OUTROS POEMAS ESQUECIDOS
Abandonada
Bem depressa
sumiu-se a vaporosa
Nuvem de amores,
de ilusões tão bela;
O brilho
se pagou daquela estrela
Que a vida lhe
tornava venturosa!
Sombras que
passam, sombras cor-de-rosa
-- Todas se
foram num festivo bando,
Fugazes sonhos,
gárrulos voando
-- Resta somente
um’alma tristurosa.
Coitada! o gozo
lhe fugiu correndo,
Hoje ela habita
a erma soledade,
Em que vive e em
que aos poucos vai morrendo!
Seu rosto
triste, seu olhar magoado,
Fazem lembrar em
noute de saudade
A luz mortiça
d’um olhar nublado.
Ceticismo
Desci um dia ao
tenebroso abismo,
Onde a Dúvida
ergueu altar profano;
Cansado de lutar
no mundo insano
Fraco que sou
volvi ao ceticismo.
Da Igreja -- a
Grande Mãe -- o exorcismo
Terrível me
feriu, e então sereno
De joelhos aos
pés do Nazareno
Baixo rezei em
fundo misticismo:
-- Oh! Deus, eu
creio em ti, mas me perdoa!
Se esta dúvida
cruel qual me magoa
Me torna ínfimo,
desgraçado réu.
Ah, entre o medo
que o meu ser aterra,
Não sei se viva
pra morrer na terra,
Não sei se morra
p’ra viver no céu!
A máscara
Eu sei que há
muito pranto na existência,
Dores que ferem
corações de pedra,
E onde a vida
borbulha e o sangue medra,
Aí existe a
mágua em sua essência.
No delírio,
porém, da febre ardente
Da ventura fugaz
e transitória
O peito rompe a
capa tormentória
Para sorrindo
palpitar contente.
Assim a turba
inconsciente passa,
Muitos que
esgotam do prazer a taça
Sentem no peito
a dor indefinida.
E entre a mágoa
que a másc’ra eterna apouca
A Humanidade
ri-se e ri-se louca
No carnaval
intérmino da vida.
O coveiro
Uma tarde de
abril suave e pura
Visitava eu
somente ao derradeiro
Lar; tinha ido
ver a sepultura
De um ente caro,
amigo verdadeiro.
Lá encontrei um
pálido coveiro
Com a cabeça
para o chão pendida;
Eu senti a
minh’alma entristecida
E interroguei-o:
“Eterno companheiro
Da morte, quem
matou-te o coração?”
Ele apontou para
uma cruz no chão,
Ali jazia o seu
amor primeiro!
Depois, tomando
a enxada, gravemente,
Balbuciou,
sorrindo tristemente:
-- “Ai, foi por
isso que me fiz coveiro!”
Pecadora
Tinha no olhar
cetíneo, aveludado,
A chama cruel
que arrasta os corações,
Os seios rijos
eram dois brasões
Onde fulgia o
simb’lo do pecado.
Bela, divina, o
porte emoldurado
No mármore
sublime dos contornos,
Os seios
brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no
colo perfumado.
No entanto, esta
mulher de grã beleza,
Moldada pela mão
da Natureza,
Tornou-se a
pecadora vil. Do fado
Do destino
fatal, presa, morria,
Uma noite entre
as vascas da agonia,
Tendo no corpo o
verme do pecado!
No claustro
Pelas do
claustro salas silenciosas,
De lutulentas,
úmidas arcadas,
Na vastidão
silente das caladas
Abóbadas
sombrias tenebrosas,
Vagueiam
tristemente desfiladas
De freiras e de
monjas tristurosas,
Que guardam
cinzas de ilusões passadas,
Que guardam pet’las de funéreas rosas.
E à noute quando
rezam na clausura,
No sigilo das
rezas misteriosas,
Nem a sombra
mais leve de ventura!
Só as arcadas
ogivais desnudas,
E as mesmas
monjas sempre tristurosas,
E as mesmas
portas impassíveis, mudas!
Il trovatore
Canta da torre o
trovador saudoso
-- Addio,
Eleonora! oh! sonhos meus!
E o canto se
desprende harmonioso,
Na vibração
final do extremo adeus.
Repercute
dolente, mavioso,
Subindo pelo
Azul da Inspiração;
Assim canta
também meu coração,
Trovador
tortorado e angustioso,
Ai! não, não
acordeis, lembranças minhas!
Saudade d’umas
noutes em que vinhas
Cantar comigo um
doce desafio!
Mas, pouco a
pouco, os sons esmorecendo,
Perdem-se as
notas pelo Azul morrendo,
-- Addio
Eleonora, addio, addio!
A louca
Quando ela
passa: -- a veste desgrenhada,
O cabelo revolto
em desalinho,
No seu olhar
feroz eu adivinho
O mistério da
dor que a traz penada.
Moça, tão moça e
já desventurada;
Da desdita
ferida pelo espinho,
Vai morta em
vida assim pelo caminho,
No sudário da
mágoa sepultada.
Eu sei a sua
história. -- Em seu passado
Houve um drama
d’amor misterioso
-- O segredo
d’um peito torturado --
E hoje, para
guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça --
o coração saudoso,
Chora, gargalha,
a desgraçada estulta.
Primavera
Primavera gentil
dos meus amores,
-- Arca cerúlea
de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu
cintilações sidéreas
E a terra chova
no teu seio flores!
Esplende,
Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul,
dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste
o fel das minhas dores
E me trouxeste o
néctar dos teus sonhos!
Cedo virá,
porém, o tiste outono,
Os dias voltarão
a ser tristonhos
E tu hás de
dormir o eterno sono,
Num sepulcro de
rosas e de flores,
Arca sagrada de
cerúleos sonhos,
Primavera gentil
dos meus amores!
A esperança
A Esperança não
murcha, ela não cansa,
Também como ela
não sucumbe a Crença,
Vão-se sonhos
nas asas da Descrença,
Voltam sonhos
nas asas da Esperança.
Muita gente
infeliz assim não pensa;
No entanto o
mundo é uma ilusão completa,
E não é a
Esperança por sentença
Este laço que ao
mundo nos manieta?
Mocidade,
portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a
Crença do fanal bendito,
Salve-te a
glória no futuro -- avança!
E eu, que vivo
atrelado ao desalento,
Também espero o
fim do meu tormento,
Na voz da Morte
a me bradar; descansa!
Soneto
Senhora, eu
trajo o luto do Passado,
Este luto sem
fim que é o meu Calvário
E ansio e choro,
delirante e vário,
Sonâmbulo da dor
angustiado.
Quantas venturas
que me acalentaram!
Meu peito túm’lo
do prazer finado
Foi outrora do
riso abençoado,
O berço onde as
venturas se embalaram.
Mas não queiras
saber nunca risonha
O mistério d’um
peito que estertora
E o segredo
d’um’alma que não sonha!
Não, não busques
saber porque, Senhora,
É minha sina
perenal, tristonha
-- Cantar o
Ocaso quando surge a Aurora.
Sofredora
Cobre-lhe a fria
palidez do rosto
O sendal da
tristeza que a desola;
Chora -- o
orvalho do pranto lhe perola
As faces
maceradas de desgosto.
Quando o rosário
de seu pranto rola,
Das brancas
rosas do seu triste rosto
Que rolam
murchas como um sol já posto
Um perfume de
lágrimas se evola.
Tenta às vezes,
porém, nervosa e louca
Esquecer por
momento a mágoa intensa
Arrancando um
sorriso à flor da boca.
Mas volta logo
um negro desconforto,
Bela na Dor,
sublime na Descrença,
Como Jesus a
soluçar no Horto.
Ecos d’alma
Oh! madrugada de
ilusões, santíssima,
Sombra perdida
lá do meu Passado,
Vinde entornar a
clâmide puríssima
Da luz que fulge
no ideal sagrado!
Longe das
tristes noutes tumulares
Quem me dera
viver entre quimeras,
Por entre o
resplandor das Primaveras
Oh! madrugada
azul dos meus sonhares.
Mas quando
vibrar a última balada
Da tarde e se
calar a passarada
Na bruma
sepulcral que o céu embaça
Quem me dera
morrer então risonho
Fitando a
nebulosa do meu sonho
E a Via-Láctea
da Ilusão que passa!
Amor e crença
Sabes que é
Deus? Esse infinito e santo
Ser que preside
e rege os outros seres,
Que os encantos
e a força dos poderes
Reúne tudo em
si, num só encanto?
Esse mistério
eterno e sacrossanto,
Essa sublime
adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as
dores e que enxuga o pranto?
Ah! Se queres
saber a sua grandeza
Estente o teu
olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do
Céu santa e infinita!
Deus é o Templo
do Bem. Na altura imensa,
O amor é a
hóstia que bendiz a crença,
Ama, pois, crê
em Deus e... sê bendita!
Arana
Ela é o tipo
perfeito da ariana.
Branca, nevada,
púbere, mimosa,
A carne
exuberante e capitosa
Trescala a
essência que de si dimana.
As níeas pomas
do candor da rosa,
Rendilhando-lhe
o colo de sultana,
Emergem da
camisa cetinosa
Entre as rendas
sutis de filigrana.
Dorme talvez. Em
flácido abandono
Lembra formosa
no seu casto sono
A languidez
dormente da indiana.
Enquanto o
amante pálido, a seu lado,
Medita, a fronte
triste, o olhar velado,
No Mistério da
Carne Soberana.
Tempos idos
Não enterres,
coveiro, o meu Passado,
Tem pena dessas
cinzas que ficaram;
Eu vivo d’essas
crenças qe passaram,
E quero sempre
tê-las ao meu lado!
Não, não quero o
meu sonho sepultado
No cemitério da
Desilusão,
Que não se
enterra assim sem compaixão
Os escombros
benditos do Passado!
Ai! não me
arranques d’alma este conforto!
-- Quero
abraçar o meu Passado morto
-- Dizer adeus
aos sonhos meus perdidos!
Deixa ao menos
que eu suba à Eternidade
Velado pelo
círio da Saudade,
Ao dobre funeral
dos tempos idos!
Soneto
Na rua em
funeral ei-la que passa
A romaria eterna
dos aflitos,
A procissão dos
tristes, dos proscritos,
Dos romeiros
saudosos da desgraça.
E na choça a
lamúria que traspassa
O coração, além,
ânsias e gritos
De mães que
arquejam sobre os pobrezitos
Filhos que a
fome derrubou na praça.
Entre todos,
porém, lânguida e bela,
Da juventude
a virginal capela
A lhe cingir de
luz a fronte baça,
Vai Corina
mendiga e esfarrapada,
A alma saudosa
pelo amor vibrada
-- A Stella
Matutina da Desgraça.
Soneto
Adeus, adeus,
adeus! E suspirando
Saí deixando
morta a minha amada,
Vinha o luar iluminando a estrada
E eu vinha pela
estrada soluçando.
Perto um ribeiro
claro murmurando
Muito baixinho
como quem chorava,
Parecia o
ribeiro estar chorando
As lágrimas que
eu triste gotejava.
Súbito ecoou o
sino o som profundo!
Adeus! -- eu disse. para mim no mundo
Tudo acabou-se,
apenas restam mágoas.
Mas no mistério
astral da noite bela
Pareceu-me inda
ouvir o nome dela
No marulhar
monótono das águas!
A aenonave
Cindindo a
vastidão do Azul profundo,
Sulcando o espaço,
devassando a terra,
A Aeronave que
um mistério encerra
Vai pelo espaço
acompanhando o mundo.
E na esteira sem
fim da azúlea esfera
Ei-la embalada
n’amplidão dos ares,
Fitando o abismo
sepulcral dos mares
Vencendo o azul
que ante si s’erguera.
Voa, se eleva em
busca do Infinito,
É como um
despertar de estranho mito,
Auroreando a
humana consciência.
Cheia da luz do cintilar de um astro,
Deixa ver na
fulgência do seu rastro
A trajetória
augusta da Ciência.
Lirial
Porque choras
assim, tristonho lírio,
Se eu sou o
orvalho eterno que te chora,
P’ra que pendes
o cálice que enflora
Teu seio branco
do palor do círio?!
Baixa a mim,
irmã pálida da Aurora,
Estrela
esmaecida do Martírio;
Envolto da
tristeza no delírio,
Deixa beijar-se
a face que descora!
Fosses antes a
rosa purpurina
E eu beijaria a
pétala divina
Da rosa onde não
pousa a desventura.
Ai! que ao menos
talvez na vida escassa
Não chorasses à
sombra da desgraça,
Para eu sorrir à
sombra da ventura!
A minha estrela
Eu disse --
Vai-te, estrela do Passado!
Esconde-te no
Azul da Imensidade,
Lá onde nunca
chegue esta saudade,
-- A sombra
deste afeto estiolado.
Disse, e a
estrela foi p’ra o Céu subindo,
Minh’alma que de
longe a acompanhava,
Viu o adeus que
ela do Céu enviava,
E quando ela no
Azul foi se sumindo
Surgia a Aurora
-- a mágica princesa!
E eu vi o Sol do
Céu iluminando
A Catedral da
Grande Natureza.
Mas a noute
chegou, triste, com ela
Negras sombras
também foram chegando,
E eu nunca mais
vi a minha estrela!
Soneto
A praça estava
cheia. O condenado
Transpunha
nobremente o cadafalso,
Puro de crime,
isento de pecado,
Vítima augusta
de indelével falso.
E na atitude do
Crucificado,
O olhar azul
pregado n’amplidão,
Pude rever
naquele desgraçado
O drama lutuoso
da Paixão.
Quando do algoz
cruento o braço alçado
Se dispunha a
vibrar sem compaixão
O golpe na
cabeça do culpado
Ele, o algoz --
o criminoso -- então,
Caiu na praça
como fulminado
A soluçar:
perdão, perdão, perdão!
Versos d’um
exilado
Eu vou partir.
Na límpida corrente
Rasga o batel o
leito d’água fina
-- Albatroz
deslizando mansamente
Como se fosse
vaporosa Ondina.
Exilado de ti,
oh! Pátria! ausente
Irei cantar a
mágoa peregrina
Como canta o
pastor a matutina
Trova d’amor, à
luz do sol nascente!
Não mais virei
talvez e, lá sozinho,
Hei de
lembrar-me do meu pátrio ninho
D’onde levo
comigo a nostalgia
E esta lembrança
que hoje me quebranta
E que eu levo
hoje como a imagem santa
Dos sonhos todos
que já tive um dia!
Ave dolorosa
Ave perdida para
sempre -- crença
Perdida -- segue
a trilha que te traça
O Destino, ave
negra da Desgraça,
Gêmea da Mágoa e
núncia da Descrença!
Dos sonhos meus
na Catedral imensa
Que nunca
pouses. Lá, na névoa baça,
Onde o teu vulto
lúrido esvoaça,
Seja-te a vida
uma agonia intensa!
Vives de crenças
mortas e te nutres,
Empenhada na
sanha dos abutres,
Num desespero
rábido, assassino...
E hás de tombar
um dia em mágoas lentas,
Negrejada das
asas lutulentas
Que te emprestar
o corvo do Destino!
Nimbus
Nimbos de bronze
que empanais escuros
O santuário azul
da Natureza,
Quando vos vejo
negros palinuros
Da tempestade
negra e da tristeza,
Abismados na
bruma enegrecida,
Julgo ver nos
reflexos da minh’alma
As mesmas nuvens
deslizando em calma,
Os nimbos das
procelas desta vida;
Mas quando céu é
límpido, sem bruma
Que a
transparência tolda, sem nenhuma
Nuvem sequer,
então, num mar de esp’rança,
Que o céu
reflete, a vida é qual risonho
Batel, e a alma
é a flâmula do sonho,
Que o guia e
leva ao porto da bonança.
No campo
Tarde. Um arroio
canta pela umbrosa
Estrada; as
águas límpidas alvejam
Como cristais.
Aragem suspirosa
Agita os
roseirias que ali vicejam.
No Alto,
entretanto, os astros rumorejam
Um presságio de
noute luminosa
E ei-la que
assoma -- a Louca Tenebrosa,
Branca,
emergindo às trevas que a negrejam.
Chora a corrente
múrmura, e, à dolente
Unção da noute,
as flores também choram
Num chuveiro de
pétalas, nitente,
Pendem e caem --
os roseirais descoram
E elas bóiam no
pranto da corrente
Que as rosas, ao
luar, chorando enfloram.
Insânia
No mundo vago
das idealidades
Afundei minha
louca fantasia;
Cedo atraiu-me a
auréola fugidia
Da refulgência
antiga das idades.
Mas ao esplendor
das velhas majestades
Vacila a mente e
o seu ardor esfria;
Busquei então na
nebulosa fria
Das Ilusões,
sonhar novas idades.
Que desespero
insano me apavora!
Aqui, chora um
ocaso sepultado;
Ali, pompeia a
luz da branca aurora
E eu tremo e
hesito entre um mistério escuro
-- Quero partir
em busca do Passado
-- Quero correr
em busca do Futuro.
O bandolim
Cantas, soluças,
bandolim do Fado
E de Saudade o
peito meu transbordas;
Choras, e eu
julgo que nas tuas cordas
Choram todas as
cordas do Passado!
Guardas a alma
talvez d’um desgraçado,
Um dia morto da
Ilusão às bordas,
Tanto que
cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes,
bandolim do Fado.
Quando alta
noute, a lua é triste e calma,
Teu canto, vindo
de produndas fráguas,
É como as nênias
do Coveiro d’alma!
Tudo eterizas
num coral de endeixas...
E vais aos
poucos soluçando mágoas,
E vais aos
poucos soluçando queixas!
Ara maldita
Como um’ave,
cindindo os céus risonhos,
Meiga, tu vinhas
a cindir os ares,
E, qual hóstia,
caindo dos altares,
Foste caindo
n’ara dos meus sonhos.
E eu vi os seios
teus virem inconhos
-- Esses teus
seios que os cerúleos lares
Branquejaram de
eternos nenufares,
Para nunca
tocarem negros sonhos!
Caíste enfim no
meu sacrário ardente,
Quiseste-me
beijar a ara do peito,
E eu quis
beijar-te o lábio redolente.
E beijei-te, mas
eis que neste enleio,
Tocando n’ara
negra o níveo seio,
Caíste morta ao
celestial preceito.
Soneto
Na etérea
limpidez de um sonho branco,
Lúcia sorriu-se
à bruma nevoenta,
E a procela
chorou n’um fundo arranco
De mágoa triste
e de paixão violenta.
E Lúcia disse à
bruma lutulenta:
-- Foge, senão
co’o o meu olhar te espanco!
E eu vi que, à
voz de Lúcia, grave e lenta,
O céu tremia em
seu trevoso flanco.
Fulgia a bruma
para sempre. A vida
Despontava na
aurora amortecida
À rutilância
mágica do dia.
Aquele riso
despertava a aurora!
E tudo riu-se, e
como Lúcia, agora,
O sol, alegre e
rubro, também ria!
Treva e luz
Neste pélago
escuro em que te afundas,
Longe das
sombras aurorais e amadas,
Sentes o peito
em ânsias revoltadas,
Diluis teu peito
em sensações profundas.
Mas, eis que
emerges, luminosa, às fundas
Águas do mar das
glórias obumbradas,
E, ante o branco
estendal das madrugadas,
Nua, em banho
ideal de amor te inundas.
Agora, à luz das
alvoradas santas
Ungem-te o corpo
redolências tantas,
Que, ao ver-te
nua, o Mundo se concentre,
E a lua, a
Virgem Mãe dos céus escampos,
Que beija a
terra e que abençoa os campos,
Beije-te o seio
e te abençoe o ventre!
Soneto
O Templo da
Descrença -- ei-lo que avisto. A imensa
Cruz da Dor está
serena como um lírio!
E vejo o
pedestal que sustenta o Martírio;
E vejo o
pedestal que sustenta a Descrença!
-- A colunata êxul
do Sonho Morto -- o círio
Da Quimera
Falaz, o túmulo da Crença,
Tudo! até o
altar onde a Angústia vibra intensa
N’uma fúria
assombral de feras em delírio!
Penetro louco
enfim o abismo funerário,
E a rasgar, a
rasgar o lúrido sacrário,
Em mim como no
Templo a Angústia se condensa,
E em mim como no
Templo, urnas de Sonho; e, em bando,
Flores mortas da
Aurora, e, eu sombrio chorando
Ante a imagem
fatal do Sepulcro da Crença!
A peste
Filha da raiva
de Jeová -- a Peste
N’um insano
ceifar que aterra e espanta,
De espaço a
espaço sepulturas planta
E em cada
coração planta um cipreste!
Exulta o Eterno
e... tudo chora, tudo!
Quando Ela
passa, semeando a Morte,
Todos dizem
co’os olhos para a Sorte
-- É o castigo
de Deus que passa mudo!
-- Fúlgido foco
de escaldantes brasas
-- O sol a
segue, e a Peste ri-se, enquanto
Vai devastando o
coração das casas...
E como o sol que a segue e deixa um rastro
De luz em tudo,
ela, como o sol -- o astro --
Deixa um rastro
de luto em cada canto!
Ideal
Quero-te assim,
formosa entre as formosas,
No olhar d’amor
a mística fulgência
E o misticismo
cândido das rosas,
Plena de graça,
santa de inocência!
Anjo de luz de
astral aurifulgência,
Etéreo como as
Wilis vaporosas,
Embaladas no
albor da adolescência,
-- Virgens
filhas das virgens nebulosas!
Quero-te assim,
formosa, entre esplendores,
Colmado o seio
de virentes flores,
A alma diluída
em eterais cismares...
Quero-te assim
-- e que bendita sejas
Como as aras
sagradas das igrejas,
Como o Cristo sagrado
dos altares.
Sombra imortal
-- E tu elas, a
sós, no pó da fulgurância
Como uma velha
cruz vela na sombra morta!
Fora, a noute é
tumbal... e a saudade da infância,
Como um’alma de
mãe, me acalenta e conforta!
Noute! E somente
tu velas a rutilância...
Lua que já
passou e que hoje ainda corta
O penetral que
guia à derradeira estância,
O penetral que
leva à derradeira porta!
Revejo em ti,
mulher, num lânguido smorzando
A sombra
virginal qu’eu adoro chorando
E há de um dia
amparar-me na luta correndo...
Ah! que um dia
da Vida, estes dardos acúleos
Caíam, também da
Dor, lá dos braços hercúleos,
Domados pela
meiga Ônfale a que me rendo!
Coração frio
Frio o sagrado
coração da lua,
Teu coração
rolou da luz serena!
E eu tinha ido
ver a aurora tua
Nos raios d’ouro
da celeste arena...
E vi-te triste,
desvalida e nua!
E o olhar perdi,
ansiando a luz amena
No silêncio
notívago da rua...
-- Sonâmbulo
glacial da estranha pena!
Estavas fria! A
neve que a alma corta
Não gele talvez
mais, nem mais alquebre
Um coração como
a alma que está morta...
E estavas morta,
eu vi, eu que te almejo,
Sombra de gelo
que me apaga a febre,
-- Lua que
esfria o sol do meu desejo!
Noturno
Para o vale
noital da eterna gaza
Rolou o Sol --
imenso moribundo --
E a noute veio
na negrura d’asa,
Santificada pela
Dor do Mundo!
U’a luz,
entanto, no negror me abrasa,
E um canto vai
morrer no vale fundo...
Que luz é esta
que das brumas vasa,
Que canto é
este, virginal, profundo?!
Rumores
santos... e no santo arpejo,
Somente tristes
os teus olhos veho,
Para o Infinito
e para o Céu voltados!
Cantas, e é
noute de fatais abrolhos...
Choras, e no meu
peito estes teus olhos
Como que cravam
dois punhais gelados!
Sedutora
Alva d’aurora, e
em lânguida sonata
Vinhas transpondo
a margem do caminho,
Branca bem como
empalidecido arminho,
Alvorejando em
arrebol de prata.
Bendita a Santa
do Carinho, inata!
E, ajoelhando à
imagem do Carinho,
O roble
altivo entreteceu-te um ninho,
Alva d’aurora,
te acolheu a mata.
Pérolas e ouro
pela serrania...
No lago branco e
rútilo do dia
O azul pompeava
para sempre vasto.
Chegaste, o seio
branco, e, tu, chegando,
Uma pantera
foi-se ajoelhando,
Rendida ao
eflúvio do teu seio casto!
Pelo mundo
Ânsias que
pungem, mórbidos encantos,
Crepitações de
flamas incendidas
Nalma explodindo
como fogos santos,
Vão pelo mundo
ensangüentando as Vidas.
Eflúvios quentes
e fatais quebrantos
Crestam a alma
das virgens adormidas...
E as brumas
velam nos sinistros mantos
E as virgens
dormem nas tumbais jazidas!
Súbitos fremem
‘spasmos derradeiros...
E a paixão
morre e os corações coveiros
Vão como duendes
pelos céus risonhos,
Chorando auroras
músicas perdidas
Na estrada santa
ensangüentando as Vidas,
Nos
campos-santos enterrando os Sonhos!
Soneto
E o mar gemeu a
funda melopéia
À luz feral que
a tarde morta instila,
Triste como um
soluço de Dalila,
Fria como um
crepúsculo da Judéia.
Já Vésper, no
Alto, a lânquida, cintila!
Naquela hora
morria para a Idéia
A minha branca e
desgraçada Déa,
Qual rosa branca
que ao tufão vacila.
E o mar chamou-a
para o fundo abismo!
E o céu chamou-a
para o Misticismo.
Nesse momento a
Lua vinha calma
E céu e mar num
desespero mudo
Não viram que
num halo de veludo
À alma de Déa se
evolava est’alma.
O riso
“Ri, coração,
tristíssimo palhaço”.
Cruz e Sousa
O Riso -- o
valtairesco clown -- quem mede-o?!
-- Ele, que ao
frio alvor da Mágoa Humana,
Na Via-Láctea
fria do Nirvana,
Alenta a Vida
que tombou no Tédio!
Que à Dor se
prende, e a todo o seu assédio,
E ergue à sombra
da dor a que se irmana
Lauréis de
sangue de volúpia insana,
Clarões de sonho
em nimbos de epicédio!
Bendito sejas,
Riso, clown da Sorte
-- Fogo sagrado
nos festins da Morte
-- Eterno fogo,
saturnal do Inferno!
Eu te bendigo!
No mundano cúmulo
És a Ironia que
tombou no túmulo
Nas sombras
mortas de um desgosto eterno!
Soneto
Vamos, querida!
Já é Ave-Maria
-- A hora dos
tristes e dos descontentes.
Desfaz-se o
peito em vibrações dormentes
E o Fado geme
sob a névoa fria!
Que eu sinta
n’alma o que tu n’alma sentes!
Nesta Missa de
Atroz Melancolia
Bebes chorando o
Vinho da Agonia
-- Consagração
das almas padecentes!
Foi numa tarde
assim que nos amamos.
Silfos
morriam... No ar, os gaturamos
Num recesso de
névoa, adormecida...
Punge-me o peito
da Saudade o cardo
Enquanto num
mocho, sonolento e tardo,
Canta no espaço
a maldição da Vida!
A um mártir
Alma em cilício,
vem, enrista a clava,
Brande no seio o
espículo e o acinace
E unjam-te o
seio que d’auroras nasce
Sangrentas
bênçãos eclodindo em lava!
Nossa Senhora te
unge a face escrava,
Cristo saudoso
te abençoa a face
De monja --
violeta que do Céu baixasse
À Virgem Santa
Natureza brava!
Vais caminhando
para a terra extrema,
Rosa dos Sonhos!
e o teu galho trema
E a tua crença,
o desespero mate-a...
E em nuvens
d’ouro ascende enfim ao plaustro
Da Neve Eterna,
estrela azul do claustro,
Levada para o
Azul da Via-Láctea!
Pelo mar
Manhã em flor. O
mar é um policromo
E imenso lago
d’íris e alabastros...
À aurora é brano
e ao sol, o mar é como
Um pálio imenso
que caiu dos astros.
Longe, bem
longe, no alvoral assomo
Ergue um navio
os altanados mastros
E o Oceano dorme
-- alourecido pomo
Num leito irial
de pérolas e nastros.
A alma da Mágoa
vai pelo seu dorso,
Em sonhos
geme... Um coração de corso
Geme no mar,
vibra no mar, entanto,
Colma-lhe o seio
a opala das esponjas...
E à noute morta
choram vagas -- monjas
Purificadas no
cristal do pranto!
Pallida luna
És do Passado!
Vieste d’alvorada
N’asa dos elfos
pela Morte espalma...
Cantas... e eu
ouço esta berceuse calma
Da harpa dos
mundos ideais do Nada!
Ergue o Missal
brilhante de tu’alma,
Mas nessa
elevação mistificada,
Vem, que eu te
espero, Deusa constelada
Desce, anêmona
êxul que o Céu ensalma!
Venhas e desças,
Lua dos Martírios,
Desças, mas
venhas pela unção dos lírios.
Visão de Ocaso
de anluaradas comas,
Vaso de Unção
descido dos espaços,
Para ungirmos
nós dois, os nossos paços,
Na tule
idealizada dos aromas.
A morte de Vênus
Velhos berilos,
pálidas cortinas,
Morno frouxel de
nardos recendendo
Velam-lhe o
sono, e Vênus vai morrendo
No berço
azul das névoas matutinas!
Halos de luz de
brancas musselinas
Vão-lhe do corpo
virginal descendo
-- Abelha irial
que foi adormecendo
Sobre um coxim
de pérolas divinas.
E quando o Sol
lhe beija a espádua nua,
Cai-lhe da carne
o resplendor da Lua
No reverbero dos
deslumbramentos...
Enquanto no ar
há sândalos, há flores
E haustos de
morte -- os últimos cangores
Da música
chorosa dos mementos!
Sonho de amor
Sobre o aromal e
amplo coxim de Flora,
Que os vapores
da tarde inca incensavam
E que um incenso
tênue e bom vapora,
Os namorados
lânguidos sonhavam.
A alma do Ocaso
entrava o céu agora
E havia pelas
tênebras que entravam
Ora
estrangulamentos surdos, ora
Ruídos de carnes
que se estrangulavam.
E sonharam assim
durante toda
A noute, e toda
a alva manhã durante!
-- O Sol jorrava
largos raios longos
E em roda víride
e nevado, em roda,
Lembrava o campo
um colorido ondeante
De vidros verdes
e cristais oblongos!
Soneto
A orgia mata a
mocidade, quando
Rugem na carne
do delírio as feras,
E o moço morre
como está sonhando
Nas suas vinte e
cinco primaveras.
Em cima -- o
oiro sem mancha das esferas,
Em baixo oiro
manchado de execrando
Festim de
sibaritas, de heteras
Lubricamente se
despedaçando!
Em cima, a rede
do estelário imáculo
Suspensa no alto
como um tabernáculo
-- A orgia, em
baixo, e no delírio doudo
Como arvoredos
juvenis tombados
Os moços mortos,
os brasões manchados,
E um turbilhão
de púrpuras no lodo!
Soneto
E ele morreu.
Ele que foi um forte
Que nunca se
quebrou pelo Desgosto
Morreu... mas
não deixou na ara do rosto
Um só vestígio
que acusasse a Morte!
O anatomista que
investiga a sorte
Das vidas que se
abismam no Sol-posto
Ficaria admirado
do seu rosto
Vendo-o tão
belo, tão sereno e forte!
Quando meu Pai
deixou o lar amigo
Um sabiá da casa
muito antigo,
Que há muito
tempo não cantava lá,
Diluiu o
silêncio em litanias...
E hoje, poetas,
já faz sete dias
Que eu ouço o
canto desse sabiá!
Vae victis
A Dor meu
coração torça e retorça
E me retalhe
como se retalha
Para escárnio e
alegria da canalha
Um leão vencido
que perdeu a força!
Sobre mum caia
essa vingança corsa,
Já que perdi a
última batalha!
E, enquanto o
Tédio a carne me trabalha,
A Dor meu
coração torça e retorça!
Cubra-me o corpo
a podridão dos trapos!
Os vibriões, os
vermes vis, os sapos
Encontrem nele
pábulo eviterno...
-- Repositório
de milhões de miasmas
Onde se fartem
todos os fantasmas,
Primavera,
verão, outono, inverno!
A dor
Chama-se a Dor,
e quando passa, enluta
E todo mundo que
por ela passa
Há de beber a
taça da cicuta
E há de beber
até o fim da taça!
Há de beber,
enxuto o olhar, enxuta
A face, e o
travo há de sentir, e a ameaça
Amarga dessa
desgraçada fruta
Que é a fruta
amargosa da Desgraça!
E quando o mundo
todo paralisa
E quando a
multidão toda agoniza,
Ela, inda
altiva, ela, inda o olhar sereno
De agonizante
multidão rodeada,
Derrama em cada
boca envenenada
Mais uma gota do
fatal veneno!
Terra fúnebre
Aqui morreram
tantos poetas! Tanta
Guitarra morta
este lugar encerra!...
Aqui é o
Campo-Santo, aqui é a Terra!
Em que a alma
chora e em que a Saudade canta!
O caminheiro que
o Pesar desterra,
Pare chorando
nesta Terra Santa,
E se cantar como
a Saudade canta,
O caminheiro
fique nesta Terra!
À noute aqui um
trovador eterno
Chora, abraçado
às campas dos poetas,
-- Esse sombrio
trovador é o Inverno!
Aqui é a Terra,
onde, ao noturno açoute,
Carpem na sombra
pássaros ascetas,
Gemem poetas --
pássaros da Noute!
Soneto
O sonho, a
crença e o amor, sendo a risonha
Santíssima
Trindade da Ventura
Pode ser
venturosa a criatura
Que não crê, que
não ama e que não sonha?!
Pois a alma
acostumada a ser tristonha
Pode achar por
acaso ou porventura
Felicidade numa
sepultura,
Contentamento
numa dor medonha?!
Há muito tempo,
o sonho, do meu seio
Partiu num célere arrebatamento
De minha crença
arrebentando a grade
Pois se eu não
amo e se também não creio
De onde me vem
este contentamento,
De onde me vem
esta felicidade?!
Meditando
Penso em
venturas! A alma do homem pensa
Sempre em
venturas! Sorte do homem! O homem
Há de embalar
eternamente a crença
Sem ter grilhões
e sem ter leis que o domem!
Punjam-no os
vermes da Desgraça, assomem
Descrenças,
surjam tédios na Descrença,
Luta, e morrem
os vermes que o consomem,
Vence, e por
fim, nada há que o abata e o vença!
Por isso, poeta,
eu penso na Ventura!
E o pensamento,
na Suprema Altura
Sinto, no imenso
Azul do Firmamento
Ir rolando pelo
ouro das estrelas,
E esse ouro
santo vir rolando pelas
Trevas profundas
do meu pensamento!
Soneto
Para que nesta
vida o espírito esfalfaste
Em vãs
meditações, homem meditabundo?!
Escalpelaste
todo o cadáver do mundo
E, por fim, nada
achaste... e, por fim, nada achaste!
A loucura
destruiu tudo que arquitetaste
E a Alemanha
tremeu ao teu gemido fundo!...
De que te
serviu, pois, estudares, profundo,
O homem e a
lesma e a rocha e a pedra e o carvalho e a haste?!
Pois, para
penetrar o mistério das lousas,
Foi-te mister
sondar a substância das cousas
Construíste de
ilusões um mundo diferente,
Desconheceste
Deus no vidro do astrolábio
E quando a
ciência vã te proclamava sábio
A tua construção
quebrou-se de repente!
O ébrio
Bebi! Mas sei
porque bebi!... Buscava
Em verdes
nuanças de miragens, ver
Se nesta ânsia
suprema de beber,
Achava a Glória
que ninguém achava!
E todo o dia
então eu me embriagava
-- Novo Sileno,
-- em busca de ascender
A essa Babel
fictícia do Prazer
Que procuravam e
que eu procurava.
Trás de mim, na
atra estrada que trilhei,
Quantos também,
quantos também deixei,
Mas eu não
contarei nunca a ninguém.
A ninguém nunca
eu contarei a história
Dos que, como
eu, foram buscar a Glória
E que, como eu,
irão morrer também.
O canto da
coruja
A coruja
cantara-lhe na porta
Sinistramente a
noite inteira! Indício
Mais certo não
havia! -- Era o suplício!...
Daí a pouco, ela
seria morta.
Saiu. O Sol
ardia. A estrada torta
Lembrava a
antiga ponte de Sublício...
Havia pelo chão
um desperdício
De folhas que a
áurea xantofila corta.
Nisto, ouve o
canto aziago da coruja!
-- Quer fugir, e
não vê por onde fuja.
Implora a Deus
como a um fetihe vago...
-- Se ao menos
voasse! -- E o horror começa! Rasga
As vestes; uma
convulsão a engasga
E morre ouvindo
o mesmo canto aziago!
Nome maldito
Das trombetas
proféticas o alarde
Falou-lhe, por
seus onze augúrios certos:
“É maldito o teu
nome! E aos céus abertos,
Não há divina
proteção que o guarde!”
Dúvidas cruéis!
Momentos cruéis! Incertos
E cruéis
momentos! Ânsias cruéis! E, à tarde,
Saiu aos tombos,
como um cão covarde,
A percorrer
desertos e desertos...
E, assombrado,
com medo do Infinito,
Por toda a
parte, onde, aos tropeços, ia,
Por toda a parte
viu seu nome escrito!
Vieram-lhe as
ânsias. Teve sede e fome...
E foi assim que
ele morreu um dia
Amaldiçoado pelo
próprio nome!
Dolências
Eu fui cadáver
antes de viver!
Meu corpo, assim
como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que
olhos de homem não têm visto
E olhos de fera
não puderam ver!
Acostumei-me,
assim, pois, a sofrer
E acostumado a
assim sofrer existo...
Existo! -- E
apesar disto, apesar disto
Inda cadáver hei
também de ser!
Quando eu morrer
de novo, amigos, quando
Eu, de saudades
me despedaçando
De novo, triste
e sem cantar, morrer,
Nada se altere
em sua marcha infinda
-- O tamarindo
reverdeça ainda,
A lua continue
sempre a nascer!
A lágrima
-- Faça-me o
obséquio de trazer reunidos
Clorureto de
sódio, água e albumina...
Ah! Basta isto,
porque isto é que origina
A lágrima de
todos os vencidos!
-- A
farmacologia e a medicina
Com a
relatividade dos sentidos
Desconhecem os
mil desconhecidos
Segredos dessa
secreção divina.
-- O
farmacêutico me obtemperou. --
Vem-me então à
lembrança o pai ioiô
Na ânsia
psíquica da última eficácia!
E logo a lágrima
em meus olhos cai.
Ah! Vale mais
lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as
drogas da farmácia!
Ave libertas
Ao clarão da
madrugada,
Da liberdade ao
toque alvissareiro,
Banhou-se o
coração do Brasileiro
Num eflúvio de
luz auroreada.
É que baqueia a
vida escravizada!
Já se ouvem os
clangores do pregoeiro,
Como um Tritão,
levando ao mundo inteiro,
Da República a
nova sublimada.
E ali do
despotismo entre os escombros,
Rola um drama
que a Pátria exalça e doura
Numa auréola de
paz imorredoura,
A República
rola-lhe nos ombros;
Enquanto fora na
trevosa agrura
Sucumbe o
servilismo, e, esplendorosa,
A liberdade
assoma majestosa,
-- Estrela
d’Alva imaculada e pura!
É livre a Pátria
outrora opressa e exangue!
Esse labéu que
mancha a glória pública,
Que apouca o
triunfo e que se chama sangue,
Manchar não pode
as aras da República.
Não! que esse
ideal puro, risonho,
Há de transpor
sereno os penetrais
Da Pátria, e há
de elevar-se neste sonho
Ao topo azul das
Glórias Imortais!
Esplende, pois,
oh! Redentora d’alma,
Oh! Liberdade,
essa bendita e branca
Luz que os
negrores da opressão espanca,
Essa luz etereal
bendita e calma.
Vós, oh Pátria,
fazei que destes brilhos,
Caia do
santuário lá da História,
Fulgente do
valor da vossa glória,
A bênção do
valor dos vossos filhos!
Quadras
Embala-me em
teus braços,
De amores bons à
sombra --
Quero em
cheirosa alfombra
Pousar os sonhos
lassos!
Teus seios, oh!
morena
-- Relíquias de
Carrara --
Têm a ambrosia
rara
Da mais rara
verbena.
Aperta-me em teu
peito,
E dá-me assim,
divina,
De lírios e
boninas
Um veludíneo
leito.
Assim como
Jesus,
Eu quero o meu
Calvário
-- Anelo morrer
vário
Dos braços teus
na Cruz!
Porque não me
confortas?!
Bem sei,
perdeste a ciência,
Morreu-te a
redolência,
Alma das virgens
mortas --
Mas não! Apaga
os traços
De tão funesto
aspeito...
Aperta-me em teu
peito,
Embala-me em
teus braços!
Vênus morta
A Via-Sacra Azul
do amor primeiro
Veste hoje o
luto que a desgraça veste
No miserere do
meu desespero...
-- Lotus diluído
n’alma dum cipreste!
Como um lilás
eternizando abrolhos
Tinge de roxo o
arminho da grinalda,
Rola a violeta
santa dos teus olhos
-- Tufos de
goivo em conchas de esmeralda.
No vácuo imenso
das desesperanças
E dos passados
viços,
Recordo o beijo
que te dei nas tranças
Emolduradas num
florão de riços.
E como um nume
de pesar, plangente,
Guarda a saudade
que levou do Marne,
Eu guardo o
travo deste beijo ardente
E a Nostalgia
desta Pátria -- a Carne.
Sonho
abraçar-te, pálida camélia,
Mas neste sonho,
langue e seminua,
Pareces reviver
a antiga Ofélia,
Opalescência
trágica da lua!
Tu, oh Quimera,
de reverberantes
E rubras asas de
beliantos pulcros,
Crava-lhe n’alma
o tirso das bacantes,
Brande-lhe
n’alma o frio dos sepulcros.
Reza-lhe todo o
cantochão memento
Dessa Missa de
amor da Extrema Agrura,
Abençoada pelo
meu tormento
E consagrada
pela sepultura.
E que ela suba
na serena gaza
Dos mistérios
dourados e serenos
À terra Ideal
das púrpuras em brasa
E ao Céu doirado
e auroreal de Vênus!
Ode ao amor
Enches o peito
de cada homem, medras
Nalma de cada
virgem, e toda a alma
Enches de beijos
de infinita calma...
E o aroma dos
teus beijos infinitos
Entra na terra,
bate nos granitos
E quebra as
rochas e arrebenta as pedras!
És soberano!
Sangras e torturas!
Ora, tangendo
tiorbas em volatas,
Cantas a Vida
que sangrando matas,
Ora, clavas
brandindo em seva e insana
Fúria, lembras,
Amor, a soberana
Imagem pétrea
das montanhas duras.
Beijam-te o
passo multidões escravas
Dos Desgraçados!
-- Estas multidões
Sonham pátrias
doiradas de ilusões
Entre os
tórculos negros da Desgraça
-- Flores que
tombam quando a neve passa
No turblhão das
avalanches bravas!
Tudo dominas! --
Dos vergéis tranqüilos
Aos Capitólios,
e dos Capitólios
Aos claros
pulcros e brilhantes sólios
De esplendor
pulcro e de fulgências claras,
Rendilhados de
fulvas gemas raras
E pontilhados de
crisoberilos.
Sobes ao monte
ondeo edelweiss pompeia
Nalma do que
subiu àquele monte!
Mas, vezes,
desces ao segredo insonte
Do mar profundo
onde a sereia canta
E onde a Alcíone
trêmula se espanta
Ouvindo a gusla
crebra da sereia!
Rompe a manhã.
Sinos além bimbalham.
Troa o conúbio
dos amores velhos
-- As borboletas
e os escaravelhos
Beijam-se no
ar...Retroa o sino. E, quietos
Beijam-se além
os silfos e os insetos
Sob a esteira
dos campos que se orvalham.
E em tudo
estruge a tua dúlia -- dúlia
Que na fibra
mais forte e até na fibra
Mais tênue,
chora e se lamenta e vibra...
E em cada peito
onde um Ocaso chora
Levanta a cruz
da redenção da Aurora
Como a Judite a
redimir Betúlia!
Bem haja, pois,
esse poder terrível,
-- Essa
dominação aterradora
-- Enorme força
regeneradora
Que faz dos
homens um leão que dorme
E do Amor faz
uma potência enorme
Que vela sobre
os homens, impassível!
Esta de amor
onde queixosa, Irene,
Quedo, sonhei-a,
aos astros, ontem, quando
Entre estrias de
estrelas, fosforeando,
Egrégia estavas
no teu plaustro egrégio
Mais bela do que
a Virgem de Corrégio
E os quadros
divinais de Guido Reni!
Qual um crente
em asiático pagode,
Entre timbales e
anafis estrídulos,
Cativo, beija os
áureos pés dos ídolos,
Assim, Irene,
eis-me de ti cativo!
Cativaste-me,
Irene, e eis o motivo,
Eis o motivo
porque fiz esta ode.
Canto de agonia
Agonia de amor,
agonia bendita!
-- Misto de
infinita mágoa e de crença infinita.
Nos desertos da
Vida uma estrela fulgura
E o Viajeiro do
Amor, vendo-a, triste, murmura:
-- Que eu nunca
chore assim! Que eu nunca chore como
Chorei, ontem, a
sós, num volutuoso assomo,
Numa prece de
amor, numa felícia infinda,
Delícia que
ainda gozo, oração, prece que ainda
Entre saudades
rezo, e entre sorrisos e entre
Mágoas soluço,
até que esta dor se concentre
No âmago de meu
peito e de minha saudade.
Amor, escuridão
e eterna claridade...
-- Calor que
hoje me alenta e há de matar-me em breve,
Frio que me
assassina, amor e frio, neve,
Neve que me
embala como um berço divino,
Neve da minha
dor, neve do meu destino!
E eu aqui a
chorar nesta noite tão fria!
Agonia, agonia,
agonia, agonia!
-- Diz e
morre-lhe a voz, e cansado e morrendo
O Viajeiro vai,
e vê a luz e vendo
Uma sombra que
passa, uma nuvem que corre,
Caminha e vai, o
louco, abraça a sombra e... morre!
E a alma se lhe
dilui na amplidão infinita...
Agonia de amar,
agonia bendita!
História de um
vencido
Sol alto. A
terra escalda: é um forno. A flama oriunda
Da solar
refração bate no mundo, acende
O pó, aclara o
mar e por tudo se estende
E arde em tudo,
mordendo a atra terra infecunda.
E o Velho veio
para o labor cotidiano,
Triste, do
alegre Sol ao grande globo quente
E pôs-se para
aí, desoladoramente
A revolver da
terra o atro e infecundo arcano.
Por seis horas
seu braço empenhado na luta,
Fez reboar pelo
solo, alta e descompassada
A dura vibração
incômoda da enxada,
Rasgando, do
agro solo, a superfície bruta.
Mas o braço
cansou! Trabalhou... e o trabalho
-- Do Eterno Bem
motor principal e alavanca --
Arrancara-lhe a
Crença assim como se arranca
De um ninho a
seda branca e de uma árvore o galho!
Sangrou-lhe o
coração e a saudade da Aurora!
-- O Hércules
que ele fora! O fraco que ele hoje era!
E surpreendido
viu que um abismo se erguera
Entre o fraco
que era hoje, e entre o Hércules de outrora!
Pois havia de
assim, nesta maldita senda
De sofrimento
ignaro em sofrimento ignaro
Ir caminhando
até tombar sem um amparo
No tremendo
marnel da Desgraça tremenda?!
II
Noute! O
silêncio vinha entrando pelo mundo
E ele, lúgubre e
só, trôpego e cambaleando
Foi-se
arrastando, foi aos poucos se arrastando,
Para as bordas
fatais dum precipício fundo!
Quis um momento
ainda olhar para o Passado...
E em tudo que o
rodeava, oito vezes, funéreo
Horrorizado viu
como num cemitério
Cadáveres de um
lado e cinzas de outro lado!
De súbito,
avistando uma frondosa tília
Julgou, louco,
avistar a ÁRvore da Esperança...
E bateram-lhe
então de chofre na lembrança
A casa que
deixara, os filhos, a família!
Não morreria,
pois! Somente morreria
Se da Vida,
sozinho, ele pisasse os trilhos...
Que mal lhe
haviam feito a esposa e a irmã e os filhos?!
Preciso era
viver! Portanto, viveria!
Viveria! E a
fecunda e deleitosa seara
Verde dos
campos, onde arde e floresce a Crença,
Compensaria toda
a sua dor imensa
Tal qual o Céu a
dor de Cristo compensara!
E aos tropeços,
tombando, o Velho caminhava...
Caminhava, e a
sonhar, bêbado de miragem,
Nem viu que era
chegado o termo da viagem,
E amplo, a
rugir-lhe aos pés, o precipício estava.
Num instante viu
tudo, e compreendendo tudo,
Quis fazer um
esforço -- o último esforço, e o braço
Pendeu exangue,
o peito arqueou-se, o cansaço
Empolgara-o, e
ele quis falar e estava mudo!
Mudo! E a quem
contaria agora as suas mágoas?!
E trágico, no
horror brutoda despedida
Abraçou-se com a
Dor, abraçou-se com a Vida
E sepultou-se
ali no coração das águas!
Cantavam muito
ao longe uns carmes doloridos!
Eram tropeiros,
era a turba trovadora
Que assim
cantava, enquanto a Terra Vencedora
Celebrava ao
luar a Missa dos Vencidos!
E o cadáver, a
toa, a flux d’água, flutua!
Ninguém o vê,
ninguém o acalenta, o acalenta...
Somente entre a
negrura atra da terra poenta
Alguém beija,
alguém vela o cadáver: a Lua!
Estrofes
sentidas
Eu sei que o
Amor enche o Universo todo
E se prende dos
poetas à guitarra
Como o pólipo
que se agarra ao lodo
E a ostra que às
rochas eternais se agarra.
O amor reduz-nos
a uniformes placas,
Uniformiza todos
os anelos
E une
organizações fortes e fracas
Nos mesmos laços
e nos mesmos elos.
Por muito tempo
eu lhe sorvi o aroma,
E, desvairado,
sem prever o abismo
Fiz desse amor
um ídolo de Roma,
Eleito Deus no
altar do fetichismo!
Tudo sacrifiquei
para adorá-lo
-- Mas hoje,
vendo o horror dos meus destroços,
Tenho vontade de
estrangulá-lo
E reduzi-lo
muitas vezes a ossos!
Todo o ser que
no mundo turbilhona
Veja do Amor, à
luz das minhas frases,
Uma montanha que
se desmorona,
Estremecendo em
suas próprias bases.
E em qualquer
parte do Universo veja --
Sombrias ruínas
de um solar egrégio
E o
desmoronamento duma Igreja
Despedaçada pelo
sacrilégio.
A Natureza veste
extraordinárias
Roupagens de
ouro. Além, nas oliveiras,
Aves de várias
cores e de várias
Espécies, cantam
óperas inteiras.
A compreensão da
minha niilidade
Aumenta à
proporção que aumenta o dia
E pouco a pouco
o encéfalo me invade
Numa clareza de
fotografia.
Na área em que
estou, ao matinal assomo,
Passa um rebanho
de carneiros dóceis...
E o Sol arranca
as minhas crenças como
Boucher de
Perthes arrancava fósseis.
Observo então a
condição tristonha
Da Humanidade, ébria
de fumo e de ópio,
Tal qual ela é,
e não tal qual a sonha
E a vê o Sábio
pelo telescópio.
O Sábio vê em
proporções enormes
Aquilo que é
composto de pequenas
Partes,
construindo corpos quase informes
E aquilo que é
uma parcela apenas.
Da observação
nos elevados montes
Prefiro, à
nitidez real dos aspectos,
Ver mastodontes
onde há mastodontes
E insetos ver
onde há somente insetos.
A inanidade da
Ilusão demonstro
Mas,
demonstrando-a, sinto um violento
Rancor da Vida
-- este maldito monstro
Que no meu
próprio estômago alimento!
Nisto a alma o
ofício da Paixão entoa
E vai cair,
heroicamente, na água
Da
misteriosíssima lagoa
Que a língua
humana denomina Mágoa!
Dos meus sonhos
o exército desfila
E, à frente
dele, eu vou cantando a nênia
Do Amor que eu
tive e que se fez argila,
Como Tirteu na
guerra de Messênia!
Transponho assim
toda a sombria escarpa
Sinistro como
quem medita um crime...
E quando a Dor
me dói, tanjo minha harpa
E a harpa
saudosa a minha Dor exprime!
Estes versos de
amor que agora findo
Foram sentidos
na solidão de uma horta,
À sombra dum
verdoengo tamarindo
Que representa a
minha infância morta!
|
"Esta casa, A CAMINHO DA LUZ, tem as portas abertas para te receber e o coração muito mais para te compreender."
domingo, 1 de janeiro de 2012
EU E OUTRAS POESIAS
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