CAPITULO XI - A CURA DIVINA
Para as camadas pobres da população e a gente simples dos bairros elegantes, onde a ignorância anda sobre tapetes de luxo, o Espiritismo não é mais do que uma seita de terapeutas obscuros, de curandeiros broncos. Acredita-se que a única finalidade do Espiritismo é curar por meio de processos mágicos. Mas a cura divina não é privilégio de ninguém. Encontramo-la em todas as religiões e seitas religiosas do passado e do presente. E mais ainda a encontraremos no futuro, mas então já reconhecida como um processo cientificamente explicável e não mais sujeito à exploração dos missionários por conta própria que hoje, nas grandes cidades, enriquecem-se á sombra da ignorância ilustrada e da miséria analfabeta, tendo por patrono o orgulho botocudo da alta medicina e o comodismo criminoso da burocracia dos órgãos oficiais de assistência social.
Ligo o rádio às 4 da manhã e ouço o locutor anunciar o programa de um missionário da cura divina. O missionário se apresenta declinando o seu título auto--concedido. Sua voz e suas expressões revelam o tipo de ignorância radiofonizada. E um ex-trabalhador braçal que descobriu em si mesmo o meio de superar sua condição inferior. Fala em nome de Jesus-Cristo e faz desfilar pelo microfone várias criaturas dos bairros humildes que relatam as curas divinas com que foram agraciadas. A linguagem de todos é pitoresca e emocionante. Revela ao mesmo tempo a penúria cultural e a fé ingênua do povo. Algumas pessoas se curaram com o programa de rádio, outras com o disco de preces do missionário, outras nas reuniões tumultuosas da igreja, outras, levando peças de roupas de certos doentes ao recinto sagrado, conseguiram curá-los.
E um desfile impressionante de sofrimento e miséria, de ignorância e crendice pelos canais de comunicação da tecnologia moderna. As vezes, isso acontece também na televisão, embora em programas eventuais, o que acentua o contraste dos desníveis culturais da nossa época. Não se pode condenar essa revelação natural da realidade em que vivemos. O mais chocante é que não se pode nem mesmo condenar a indústria e o comércio dos missionários espertalhões, que bem ou mal atendem às necessidades de milhares de pessoas desamparadas.
A cura divina - hoje cura paranormal - é uma realidade inegável em todo o mundo. Mesmo os cientistas de cabeça-dura reconhecem a sua existência e procuram explicá-la através dos processos psicossomáticos, da influência de energias psíquicas sabre o físico. Essa influencia pertence, segundo o Espiritismo - e agora segundo as pesquisas parapsicológicas e a descoberta do corpo-bioplásmico pelos físicos e biólogos soviéticos - à própria estrutura psicofísica do homem. A vida se revela aos nossos olhos, nestes dias, como o resultado da ação do espírito sobre a matéria, e isso em todas as suas manifestações, coma já ficou evidente no capítulo sobre o corpo-bioplásmico. Não se trata de nada excepcional ou sobrenatural, mas, pelo contrário, de um fato simplesmente natural. E precisamente por isso o problema da aura divina exige atenção imediata e acurada da Ciência, para que ela seja retirada das mãos ineptas e em geral gananciosas dos missionários por conta própria. Se isso não for feito, se os cientistas não levarem o assunto a sério e os médicos e suas associações profissionais não puserem de lado os seus preconceitos, enfrentando corajosa e dignamente o problema, serão vãs todas as tentativas repressoras por meios policiais e ações judiciais. Um fato deve ser encarado como fato e não como lenda ou superstição. Temos de usar a cabeça e livrar-nos da estúpida pretensão de superioridade cultural em área que não conhecemos.
A terapêutica espírita existe e vive em luta incessante em duas frentes. De um lado é atacada por associações médicas e de outro lado pelas igrejas. A burrice e o interesse profissional estão presentes nessas duas frentes. Entretanto, a terapêutica espírita não se apóia em pressupostos ingênuos nem se serve dos processos do curandeirismo. Suas bases teóricas são científicas e seus métodos psicoterapêuticos, como demonstrou Jean Ehrenwald, superam os da psicoterapia científica da atualidade. O que a prejudica aos olhos dos especialistas não está nela, mas neles: é o preconceito, a negação apriorística e portanto anticientífica da interferência de influências estranhas no psiquismo humano. Esse tipo de influências já não pode ser negado por ninguém, depois dos avanços científicos do nosso tempo. Somente pessoas desatualizadas cientificamente podem ainda insistir na negação de realidades cientificamente demonstradas e aceitas nos meios universitários mais conceituados do mundo.Muitos dos casos relatados no programa de rádio do missionário a que me referi, apesar das circunstâncias simplórias em que se deram, são perfeitamente enquadráveis na terapêutica paranormal, admitindo-se ou não que o missionário seja um sujeito para-normal. Outros casos se explicam pelas próprias teorias da psicoterapêutica científica, sem necessidade dos dados da paranormalidade. Kardec utilizou-se vá-rias vezes da contribuição de médicos para a verificação de casos da chamada mediunidade-curadora, como se pode ver pelas suas relações com o Dr. Demeure, relatadas minuciosamente na Revista Espírita. A médium observada pelo referido médico, em sua clínica, era uma jovem que curava pelos processos típicos do curandeirismo mais grosseiro, através de beberagens produzidas com ervas, mas sob a orientação de espíritos que a assistiam. O próprio Kardec foi médico e clinicou em Paris, como se pode ver pela sua recente biografia de André Moreil. Discute-se o problema da sua graduação em medicina, que não se conseguiu provar, mas seu contemporâneo Henri Sausse, que foi também o seu primeiro biógrafo, afirma que ele defen-deu brilhantemente sua tese de doutoramento, O que não se pode negar é que conhecia profundamente ciências médicas e lecionou-as em Paris.
A terapêutica espírita não pretende superar a medicina, mas tão-somente contribuir para torná-la mais eficiente. O número de hospitais espíritas existentes em nosso país e o seu aumento constante, apesar das restrições e da má-vontade que encontram de parte dos poderes oficiais, é prova disso. Os hospitais espíritas não são construídos par uma igreja poderosa nem segundo um plano estadual ou nacional. São iniciativas de 'pequenos grupos ou instituições doutrinárias, geralmente desprovidas de recursos financeiros, que agem com absoluta autonomia. O móvel dessas iniciativas é o desejo de estender a todos os recursos da terapêutica espírita em conjugação com a medicina. Chega a ser emocionante o empenho nesse sentido, quando se sabe que os médicos não-espiritas, chamados a trabalhar em hospitais espíritas, criam dificuldades ao seu funcionamento e os serviços oficiais proíbem os simples passes e até mesmo as preces no recinto hospitalar. No caso dos hospitais psiquiátricos o que se passa merecia um longo estudo. O oficialismo médico e governamental, embora consciente das deficiências da medicina para curar a maioria dos doentes, fecha-se numa rigidez irracional, negando aos espíritas o direito de socorrer aqueles doentes com seus recursos próprios, que, no máximo, seriam inócuas. As alegações teóricas em contrário não resistem ao volume de fatos favoráveis aos espíritas e particularmente às conquistas atuais das ciências no tocante à realidade espiritual.
A finalidade do Espiritismo não é terapêutica, mas cultural. No seu aspecto científico, no campo específico da Ciência Espírita, o que importa é a descoberta das leis naturais do espírito, que não estão ao alcance das pesquisas materiais nem das indagações teológi-cas. Descobrir essas leis pela pesquisa espírita e os processos de sua relação com as leis dos fenômenos materiais é um objetivo que hoje se impõe como necessidade do próprio desenvolvimento cientifico. A descoberta da antimatéria pelos físicos mostrou a existência de outro mundo ligado ao nosso por um sistema evidente de interpenetração. A descoberta do corpo-bioplásmico mostrou que esse mundo antimaterial pode ser habitado por seres humanos dotados de corpos diferentes dos nossos. As pesquisas parapsicológicas mostraram, particularmente através dos fenômenos teta (relacionados com a morte e as manifestações espíritas) a existência de relações entre essas duas populações. O Espiritismo antecipou de um século as pesquisas sobre esses problemas, que são de interesse vital para toda a Humanidade.
A terapêutica espírita resulta naturalmente desse conhecimento antecipado, a que somente agora as ciências estão encontrando acesso. Ela não decorre,portanto, de superstições, hipóteses ou práticas tradicionais de cura envoltas em mistério, sustentadas por crenças populares. Seus fundamentos são racionais e científicos. E prova de ignorância lamentável confundir-se a terapêutica espírita com o curandeirismo ou com as práticas religiosas que se apóiam apenas nos estímulos da fé irracional. Já vimos que a própria fé encontra no Espiritismo explicação e definição diversas das que lhe são dadas na cultura materialista e na cultura religiosa. A fé não age nos casos de cura como um poder atuante, mas coma uma base em que se apóiam os poderes do espírito para agirem com eficácia. O conhecimento dos fatores causadores da doença e a descoberta das leis que permitem a aplicação de processos curativos eficientes são os elementos essenciais da terapêutica espírita. Justamente por isso ela pode e deve complementar os recursos médicos, como a experiência secular tem provado.
Vejamos um caso típico de contribuição espírita em plano concreto. Richet, fisiologista e médico, prêmio Nobel de sua especialidade, descobriu o ectoplasma dos processos de materialização. Geley, também fisiologista - e espírita - deu prosseguimento às pesquisas de Richet. Ambos provaram, secundados por outros cientistas eminentes, entre as quais Crookes e Zöllner, que o ectoplasma é uma emanação do corpo do médium em forma de um plasma leitoso. Schrenk-Notzing, na Alemanha, conseguiu porções de ectoplasma, colhidas em sessões mediúnicas experimentais, e submeteu-as a exame histológico em laboratórios de Berlim e Viena, comprovando a sua natureza orgânica. Várias manifestações espíritas aludiram à possibilidade de aplicação terapêutica desse elemento para a reconstituição de tecidos vivos afetados ou destruídos por processos cancerosos. Experiências realizadas atualmente em sessões de materialização deram resultados animadores. Infelizmente não foram feitas em instituições científicas. Mas os médicos participantes dessas experiências entendem que, se pesquisadores categorizados tratarem do assunto abrirão uma nova era no tratamento das recuperações consideradas impossíveis.
Pietro Ubaldi, que apesar de médium não era espírita, admite em suas obras que o ectoplasma pode ser um ensaio de nova forma de reprodução da espécie, um novo sistema biológico em desenvolvimento, que substituirá o sistema animal de reprodução sexual. Todas as pessoas envolvidas nessas duas hipóteses são dotadas de cultura científica. Nenhuma delas apelou para explicações sobrenaturais do fenômeno.
As campanhas clericais contra o Espiritismo, apoiadas muitas vezes pelas corporações científicas, alimentaram o preconceito antiespírita numa sociedade fechada, cuja cultura rigidamente estruturada não admitia incursões estranhas, nem mesmo quando lideradas por expoentes dessa mesma cultura. A luta de Pasteur contra os cabeças-duras do seu tempo é suficiente para mostrar as barreiras que se levantam quando uma novidade aparece no campo científico. Mas hoje essas barreiras já foram de tal maneira derrubadas dentro da própria fortaleza científica que podemos ter alguma esperança. Parece não estar longe o dia em que o sonho de Kardec será realizado: as ciências do espírito e da matéria se conjugarão.
Estamos às portas de uma revolução cultural decisiva, A terapêutica espírita exerce uma fascinação crescente sobre os cientistas e os médicos arejados, de mente aberta para as possibilidades novas. Que farão as religiões dogmáticas em face das transformações radicais que já abalam suas velhas estruturas? Continuarão apegadas aos seus dogmas envelhecidos ou flutuarão no vácuo das reformas teológicas baseadas em sofismas brilhantes? E qual a doutrina, qual a concepção do mundo que apresenta essas condições gerais de unificação do conhecimento e ampliação das dimensões da vida e do homem, além do Espiritismo?
O problema da experiência de Deus e o da cura divina se confundem, tanto em sua origem quanto em seu desenvolvimento histórico, em seus pressupostos e em sua prática. Suas raízes se entrelaçam no chão das heranças atávicas, ambos têm a mesma procedência remota, derivam das fórmulas mágicas e passaram pelos mesmos processos de elaboração mística nas coordenadas do tempo e do psiquismo em desenvolvimento. Fundam sua eficácia na fé ingênua que brota do sentimento religioso intuitivo (ou instinto espiritual) e requerem posturas corporais específicas e elementos materiais como veículos da graça celeste. As religiões formalistas se acomodam nesses processos da tradição milenar, esquecidas de que o homem já superou o uso de instrumentos rudimentares nas relações com Deus.
O complicado aparato das religiões mágicas, que auxiliou no passado o pensamento humano a desprender-se das entranhas da terra, atualmente impede esse mesmo pensamento de atingir a autonomia de que necessita para librar-se aos planos superiores da verdadeira vida espiritual. Enquanto os clérigos ilustrados retêm os seus adeptos no emaranhado das práticas rituais, impossibilitando-lhes a compreensão verdadeira dos princípios evangélicos, os missionários por conta própria capitalizam habilmente os resultados dessa retenção indébita através do comércio da cura divina. E uma espécie de conluio inconsciente, de que uns e outros não têm a percepção clara, e cujos resultados, úteis no plano especifico da prática, são entretanto prejudiciais no plano geral da evolução humana.
Imantar o psiquismo das camadas ingênuas da população, através de excitações emocionais, ao campo hipnótico dos mitos é o mesmo que incentivar o uso de psicotrópicos a pretexto de socorrer o desespero ,humano. Na própria Bíblia, os clérigos atuais (uma espécie social em vias de extinção) encontram a lição arrepiante de Moisés, que preferiu mandar passar a fio de espada os israelitas apegados à idolatria e à magia egípcia, a comprometer o futuro espiritual de Israel. Hoje não precisamos dessa violência assassina, basta um pouco de boa-vontade e raciocínio para se compreender que as raízes amargas do passado podem ser extirpadas com ensinos e exemplos de renovação mental.
O sentimento religioso do homem responde pelo impulso de transcendência que as filosofias existenciais são unânimes em reconhecer no devir humano, no instinto evolutivo da espécie. O desenvolvimento da lei de adoração, atestado pelas pesquisas antropológicas, o confirma. Não há mais tempo a perder com artificialismos superados.
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